
[49ª Mostra de São Paulo] À Paisana
Este texto faz parte da cobertura da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 16 e 30 de outubro.
O ano é 1997 e Lucas (Tom Blyth) é um policial que trabalha à paisana em um setor da polícia encarregado de prender em flagrante homens praticando crimes de atentado ao pudor. Ele fica sentado em uma área aberta de um shopping center e troca olhares com os homens do local. Quando sente que houve algum tipo de conexão ou interesse, dirige-se para o banheiro, certificando-se de que está sendo seguido pelo sujeito. Existem algumas regras: ele não pode entrar nas cabines e não pode falar com ele. Quando ele faz algum movimento para abrir as calças, Lucas se desvencilha da situação e outro policial faz a prisão em flagrante.
Escrito e dirigido por Carmen Emmi, À Paisana (Plainclothes) lida com o senso de culpa em muitas camadas, mas também, especialmente, como essa culpa nasce das amarras normalizadoras da sociedade em torno dos indivíduos. Lucas vive um casamento que está aos poucos acabando. Ele ama Emily, mas não sabe como lidar com a atração que sente por outros homens e nem com a forma como isso interfere em seu trabalho. A cineasta insere uma montagem de imagens granulosas quando algo o perturba, seja quando está nervoso no trabalho de campo, seja quando lembra de um flagrante e se vê naquele homem preso por seu desejo.
O ambiente policial não ajuda: a rotina dos exercícios praticados juntos, os corpos nus nos vestiários e chuveiros, os tapas nas nádegas, os comentários sobre o porte físico um do outro. A convivência é de uma masculinidade exacerbada que exalta a beleza da forma física também masculina. É significativo, inclusive, que a polícia faço uso de instrumentos voyeur de captura de imagem, que filmem para definir quais são os comportamentos considerados legais e ilegais, saudáveis e imorais.
Em uma das arapucas armadas no shopping, Lucas se vê tão atraído por Andrew (Russell Tovey), um homem para quem deve armar um flagrante, que desiste no meio da ação. Uma troca de telefones possibilita um encontro posterior em um cinema antigo. Um nome falso: Gus, nome de seu falecido pai. Lucas/Gus iluminado com uma luz dourada como uma divindade, Andrew, muito humano, com aliança no dedo. Esse jogo de esconde-esconde se prolonga por outros encontros. Lucas já separado, mas Andrew casado. Muita coisa em jogo. O tipo de conversa sobre ser gay e contar para os demais parece deslocada no tempo: não parece 1997 e sim 5 ou 10 anos antes.
Ainda assim, é interessante que o trabalho de Andrew seja religioso. E não por acaso ele, com sua esposa e dois filhos fala literalmente “It will pass” (vai passar), em uma referência para lá de direta a Fleabag. Soma-se a isso a farda (sempre invisível) de Lucas e o medo que ele tem de que sua mãe descubra que é gay e temos um verdadeiro caldeirão de panóptico. Família, polícia e religião como instituições reguladoras, que controlam a vida e a sexualidade, impedindo os personagens de se expressarem para além da culpa constante, como se a cada passo estivessem prestes a desafiar uma ordem invisível. A ansiedade, o medo, o jeito que Lucas coça o pulso sob stress. O pavor dele de ser filmado, reconhecido, preso ao ponto da paranoia. É perceptível que ele está escondendo muito e sob muita pressão. A naturalidade dos sentimentos pode ser expressa longe de tudo, numa estufa de flores.
O desfecho do filme remete a I Saw The TV Glow: cada pessoa tem seu próprio tempo, talvez para você não seja tarde. O que obviamente funciona de formas diferentes para cada experiência queer, e transportar o filme para a década de 1990 amplifica a barreira a ser transposta. De toda forma, há acolhida na trajetória de Lucas, que é uma de destruição/desconstrução/ressignificação daqueles elementos, polícia, religião, família, que o mantinham aprisionado. À Paisana é um filme estranho, que às vezes parece antigo como a época que retrata, mas que acerta no senso de aprisionamento e na jornada de libertação do protagonista.


Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo. Agradecemos em especial a: Carlos Henrique Penteado, Gizelle Barros Costa Iida, Helga Dornelas, João Bosco Soares, Janice Eleotéreo, José Gabriel Faria Braga de Carvalho, José Ivan dos Santos Filho, Lorena Dourado Oliveira, Lucas Ferraroni, Mariana Silveira, Patrícia de Souza Borges, Pedro Dal Bó, Vinicius Mendes da Cunha, Waldemar Dalenogare Neto, Zelia Camila de O. Saldanha, Nayara Lopes.
