[49ª Mostra de São Paulo] Ainda é Noite em Caracas
Este texto faz parte da cobertura da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 16 e 30 de outubro.
Com Ainda é Noite em Caracas (Aún Es de Noche en Caracas), as diretoras Mariana Rondón e Marité Ugása adaptam o romance de mesmo nome de Karina Sainz Borgo, com a proposta de criar um filme de suspense abarcando os acontecimentos recentes da política venezuelana. Na película, uma mulher chamada Adelaida (Natalia Reyes) acabou de voltar do interior, onde enterrou sua mãe, falecida em virtude de um câncer. Ela encontra a capital em caos, tomada por protestos e observa tudo pelas janelas de seu apartamento.
Esse contexto político é absolutamente difuso: pouco ou nada se fala sobre o que está acontecendo, são protestos genéricos, com manifestantes genéricos. Da mesma forma, quando, em um momento em que ela se ausenta de casa, parte de seu prédio, incluindo seu apartamento, é tomado por uma milícia, nada é explicado. Sabemos que é uma milícia porque quando a polícia quer subir a líder diz para sair de seu território e eles a obedecem. A solução de Adelaida é ocupar o apartamento da vizinha da frente, que convenientemente havia falecido, e de lá continuar a observar pela janela. Manifestantes, milícias, polícia, exército: sob seu olhar apartado da realidade da rua, tudo parece igualmente perigoso, todas as violências são as mesmas. (A única exceção notável é quando a polícia mata um idoso dentro de um camburão).
Adelaida é o tipo de pessoa de classe média que, escondida em casa, que vê as notícias pela TV e se sente acuada. Sua vida vira uma janela indiscreta. A direção de arte do filme, de Ezra Buenrostro, é impecável na construção do labirinto que configura os dois apartamentos vizinhos, provendo tantas janelas bem posicionadas para a rua. E em meio a esse voyeurismo me questionei porque as diretoras não davam mais informações sobre os agentes presentes na trama e então percebi que realmente era estratégico.
Esse filme é um produto para o mercado internacional. Ele gera um thriller, como se a política de uma nação pudesse ser reduzida a um mistério, uma espécie de Quarto do Pânico sócio-político. É pra inglês ver. Bem dirigido, tudo bem. A belíssima montagem de Soledad Salfate, por exemplo, tem match cuts que criam justaposições entre o passado e o presente de Adelaida e outros elementos da narrativa.
Mas como filme, é um discurso até meio perigoso. Adelaida se apropriou do apartamento (e da vida, do dinheiro, dos documentos da vizinha) porque teve essa sorte. Seu destino: fugir para a Europa. No aeroporto, várias pessoas fazendo o mesmo enquanto trocam olhares nervosos: todas sabem o que as outras estão fazendo. Em Ainda é Noite em Caracas Adelaida parece sempre assustada em seu próprio país e foge. Mas imagino que todos os dias há milhões de pessoas vivendo suas vidas sem esse mesmo medo. Ou talvez até com medo. E todos os dias há aquelas na rua se manifestando (mas ela só as vê pela janela). Que mudança de perspectiva seria se ela pisasse na rua.


Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo. Agradecemos em especial a: Carlos Henrique Penteado, Gizelle Barros Costa Iida, Helga Dornelas, Henrique Barbosa, João Bosco Soares, Janice Eleotéreo, José Gabriel Faria Braga de Carvalho, José Ivan dos Santos Filho, Lorena Dourado Oliveira, Lucas Ferraroni, Marden Machado, Mariana Silveira, Nayara Lopes, Patrícia de Souza Borges, Pedro Dal Bó, Vinicius Mendes da Cunha, Waldemar Dalenogare Neto, Zelia Camila de O. Saldanha

