Cinema,  Críticas e indicações,  Filmes

[49ª Mostra de São Paulo]  Aqui Não Entra Luz

Este texto faz parte da cobertura da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 16 e 30 de outubro.


Alguns muitos filmes brasileiros já foram feitos investigando as trabalhadoras domésticas, de ficção a documentários. Tanto com teor político, quanto por uma perspectiva mais distante, há muito o que se aprender sobre este país quando se olha para esse assunto tão brasileiro, a escravidão moderna. Karol Maia, no entanto, traz uma visão íntima, pois seu objetivo ao realizar Aqui Não Entra Luz é também conhecer e retratar a vida de sua mãe e, dessa forma, ela partilha seus pensamentos e sentimentos particulares por meio de uma narração em off intimista e de sua participação nas entrevistas, seja pela voz que interage com as entrevistadas, ou quando vem para o outro lado da câmera para facilitar a entrada da mulher que inspirou o documentário.

Maia elabora sua narrativa primeiro apresentando a si mesma e sua mãe, contextualizando a motivação para Aqui Não Entra Luz não somente existir, mas o que fundamenta seu discurso. Aos poucos, em depoimentos em diversos pontos do Brasil, a cineasta vai tecendo seus pontos. Ela permite que as trabalhadoras domésticas entrevistadas partilhem suas experiências e fica nítido como se sentem à vontade com Maia. Mesmo quando as mulheres olham direto para sua câmera, sempre bastante perceptível no filme, é a presença da diretora que fica mais à frente. Maia se faz presente, usando o dispositivo como seu corpo, e sua voz como ferramenta para conduzir a obra.

É gradual. Primeiro, um depoimento forte de uma mulher leve, mesmo com sua história tão pesada e com uma tristeza estampada, vai dizer mais sobre os caminhos da narrativa. Em seguida, Maia passa a ser mais incisiva com o ponto que quer chegar. Retratar como a escravidão no Brasil foi se moldando aos tempos, enraizada na cultura dos lares do país, não é uma observação generalista para Aqui Não Entra Luz, mas uma conversa próxima com as mulheres afetadas por esse processo. Sem invadir seus espaços, a cineasta escuta e pergunta, operando não apenas como parte da equipe que realiza o longa, mas também como personagem interessada nesse resultado. Maia, afinal, procura nos depoimentos pedaços da mãe, de sua própria história, se enxerga e reflete tantas outras pessoas em cada papo.

Assim, Aqui Não Entra Luz, pode ser um documentário simples e minimalista em sua construção, mas dá espaço de sobra para que sua diretora elabore essa pesquisa tão íntima quanto fundamental para a compreensão do estado das coisas. Filmado durante alguns anos, fato que a cineasta pontua diversas vezes como que compartilhando a dificuldade de encontrar o momento certo para fechar esta obra, o longa só é completo com a participação da personagem que o motivou. A vinda da mãe de Maia significa também uma presença mais ativa da cineasta na frente das câmeras. Sua voz que antes trazia essa sensação, conversando de igual tanto com suas entrevistadas quanto com quem assiste, agora a posiciona como personagem mais vulnerável. 

Os momentos de interação entre mãe e filha são essenciais para costurar tudo que foi dito até aquele ponto. Aqui Não Entra Luz não é puramente um documentário de observação, é uma angústia coletiva, um incômodo provocado, talvez até um revide, de uma situação que não muda. Muitas mulheres questionam a diretora sobre fazer um filme sobre algo tão triste, se seu objetivo é ver como as coisas foram no passado e como estão agora. As respostas não estão palavra por palavra em cena, porém se constroem facilmente em quem assiste. A conclusão é clara e dolorosa. 

Então as câmeras são apontadas para as grandes casas e apartamentos, para as plantas desiguais que mostram o famoso “quartinho de empregada” e para os cômodos em que o sol não bate. A intenção é provocar e o efeito é imediato. Os patrões não são vistos, pois o foco aqui é dar voz às trabalhadoras e suas histórias, suas imagens, no entanto, parecem se construir no imaginário. Pessoas que não permitem partilhar seus talheres, que impõe condições absurdas e que tratam suas funcionárias sem humanidade. A cada entrevista, fechando-se por fim na trajetória de mãe e filha, Aqui Não Entra Luz conta como as trabalhadoras domésticas tiveram direitos conquistados tarde demais, e seguem apertadas ao lado das lavanderias.

Como o bloco final, entre Maia e sua mãe, é o mais intimista e tocante do longa, parece apenas natural que um documentário filmado por anos, em diferentes pontos, só possa ser encerrado quando a entrevistada de destaque assim desejar. É tão bonito quanto melancólico perceber como todas as mulheres falam com leveza sobre suas vidas, mas com muita dor incrustada, sem compreender as razões para uma obra assim existir, para alguém apontar as lentes para elas e as colocar no centro da narrativa. Tudo lhes parece muito triste, angustiante, porém é um documentário capaz de traçar um histórico, se impor e provocar, ser empático com suas personagens e ainda tirar muita beleza da relação íntima que partilha com elas.


Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo. Agradecemos em especial a: Carlos Henrique Penteado, Gizelle Barros Costa Iida, Helga Dornelas, Henrique Barbosa, João Bosco Soares, Janice Eleotéreo, José Gabriel Faria Braga de Carvalho, José Ivan dos Santos Filho, Lorena Dourado Oliveira, Lucas Ferraroni, Marden Machado, Mariana Silveira, Nayara Lopes, Patrícia de Souza Borges, Pedro Dal Bó, Vinicius Mendes da Cunha, Waldemar Dalenogare Neto, Zelia Camila de O. Saldanha.

Crítica de Cinema e formada em Rádio e TV. Apaixonada pela sétima arte desde sempre, trabalhando com marketing para pagar as contas e assistindo a filmes para viver.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *