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[49ª Mostra de São Paulo] Canções das Árvores Esquecidas

Este texto faz parte da cobertura da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 16 e 30 de outubro.


Canções das Árvores Esquecidas (Songs of Forgotten Trees) é escrito e dirigido por Anuparna Roy, que venceu o prêmio de melhor direção estreante no Festival de Veneza com ele. No filme, Thooya (Naaz Shaikh) vive em Mumbai em um apartamento precário. Outra moça, Shweta (Sumi Baghel), chega para ocupar o quarto que está vago. O clima é quente: dorme-se de mosqueteiro e as janelas estão sempre abertas. Os figurinos são leves: roupas frescas de ficar em casa. O cenário é simples: plantas mal cuidadas, azulejos quebrados e sujos, paredes descascadas, parca mobília, mas uma cozinha organizada. A direção de arte constrói um microcosmo da vida de ambas em que não há penúria, mas não há abundância e o espaço confinado é limitado e demarca essa relação que está sendo elaborada.

A colega de apartamento trabalha com atendimento telefônico em uma empresa de TI. Ela abotoa uma camisa, senta-se em sua cama com uma garrafa de água ao lado, fone de ouvido na cabeça e começa a ouvir o pós-venda. Já Thooya faz aulas de atuação e grava audições para trabalhos que nunca vêm, mas consegue seu sustento se prostituindo.

Shweta por sua vez conheceu um rapaz em um aplicativo para encontrar pretendentes para casamento. A discussão entabulada entre ambas a respeito do matrimônio e da prostituição é muito interessante. Afinal, como argumenta Thooya, são os clientes que pagam sua terapia, e se Shweta casar, ela vai precisar de terapia (e o que fica subentendido é que ninguém vai lhe dar dinheiro para pagar).

Mas os homens, embora eventualmente sejam assunto, perturbem a paz, e mesmo penetrem o espaço das duas, são secundários. O que Anuparna Roy cria é uma narrativa de gradual descoberta da trajetória e da intimidade compartilhada entre elas, das roupas estendidas no varal da varanda, à refeição realizada sentadas no chão da cozinha. Cada conversa intensifica um senso de reconhecimento. Os planos da diretora ajudam, enquadrando-as em proximidade constante. 

E nesse reconhecimento fica cada vez mais ambíguo o passado e o presente da relação. Isso fica claro em uma cena em que Thooya lava a roupa na área do chuveiro, enquanto Shweta lava a área do vaso sanitário, ambas conversando, enquadradas frontalmente pela câmera, lado a lado, mas separadas por uma parede, como se essa barreira estivesse mais do que fisicamente entre elas. Migrantes e sozinhas, compartilham (compartilharão?) (compartilharam?) de um pedaço de vida juntas nessa cidade difícil e se ajudam, na medida do possível.

Talvez a maior surpresa, especialmente pela curta duração, esteja no desfecho abrupto, especialmente se alguém espera um final convencional. Mas a beleza do filme e a imersão na relação e de entrelaçamento entre as duas protagonistas é suficiente para bastá-lo. Entre diálogos, silêncios, carinhos e cuidados, Canções das Árvores Esquecidas registra uma dimensão misteriosa do vínculo entre essas mulheres.


Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo. Agradecemos em especial a: Carlos Henrique Penteado, Gizelle Barros Costa Iida, Helga Dornelas, João Bosco Soares, Janice Eleotéreo, José Gabriel Faria Braga de Carvalho, José Ivan dos Santos Filho, Lorena Dourado Oliveira, Lucas Ferraroni, Mariana Silveira, Patrícia de Souza Borges, Pedro Dal Bó, Vinicius Mendes da Cunha, Waldemar Dalenogare Neto, Zelia Camila de O. Saldanha, Nayara Lopes.

Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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