[49ª Mostra de São Paulo] Garça-Azul
Este texto faz parte da cobertura da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 16 e 30 de outubro.
No começo do filme, quando a família visita um santuário ecológico, uma narração do parque explica que as aves que habitam o local, as garças-azuis, quando formam casais, se alternam nos cuidados dos filhotes. Uma delas cuida do ninho, enquanto a outra sai para pescar. Essa alternância ocorre com uma frequência cada vez maior, até que os filhotes estejam autossuficientes e o casal se desfaça. Essa mensagem funciona como uma espécie de dispositivo de enquadramento para os acontecimentos que envolvem o casal de protagonistas e explica o título do filme, Garça-Azul (Blue Heron), premiado como melhor primeiro filme no Festival de Locarno.
A mãe (Iringó Réti) e o pai (Ádám Tompa) são húngaros morando no Canadá com seus quatro filhos: o mais velho, Jeremy (Edik Beddoes), os meninos Henry (Liam Serg) e Felix (Preston Drabble) e a menina caçula Sasha (Eylul Guven). A história é narrada pelo olhar de Sasha, que também é parcialmente inspirada na própria diretora-roteirista, Sophy Romvari. O momento retratado é um recorte após a família se mudar, pelo visto uma de muitas vezes, em umas férias de verão. As crianças brincam no pula-pula do jardim, conhecem outras crianças vizinhas, vão à praia, se divertem.
A nota dissonante é o adolescente Jeremy e seu comportamento errático. Às vezes gentil e atencioso, se juntando a elas, às vezes distante, vendo de longe o que elas fazem, às vezes desafiador. O desenho de som provoca desconforto quando se preparam para um passeio e ele bate sua bola de basquete incessantemente contra a parede em uma provocação sem motivo. Em outra hora, em contraste, brinca de fazer barquinhos de papel para o banho de banheira dos meninos. Quando chega em casa acompanhado da polícia depois de tentar roubar uma loja, uma plano detalhe, tremido, na algema, dá conta do constrangimento do menino.
Entre consultas médicas, psicólogos, psiquiatras, policiais, familiares, ninguém parece entender Jeremy, solitário, sorriso doce, desenhando seus mapas, andando no telhado por um fio. Para os pais resta o sentimento de culpa e a exaustão, além do desejo de proteger o restante da prole, que é filha biológica desse pai. Pai esse, inclusive, que tem fascinação pelo registro. Ele filma, ele fotografa, ele cuida do ninho, enquanto a mãe sai para pescar. Tudo culmina no dia em que uma conselheira tutelar visita a casa da família e eles aceitam entregar Jeremy a um lar temporário.
Após uma hora de filme, há uma ruptura na reconstituição de época e a narrativa se passa para o tempo presente, como se Sasha adulta (Amy Zimmer)/a diretora quisessem entender o que aconteceu. Sasha tornou-se cineasta (meta-Sophy Romvari) e entrevista conselheiros tutelares sobre o passado de Jeremy. As fichas do irmão são entregues e examinadas para que digam o que teria sido possível fazer com os recursos de hoje. Nenhuma resposta certeira é fornecida.
O filme fecha um arco narrativo interessante, mesclando passado e presente, ficção e documentário, buscando a cura para dores ainda sentidas e fantasmas claramente ainda muito presentes. Quando Sasha adulta revisita a mãe abrindo mão do irmão, ela tira o foco da câmera, retratando uma mãe duplicada, com duas cabeças: uma mãe que pode ser mãe e pode abrir mão da maternidade ao mesmo tempo. E se vê criança ouvindo a conversa atrás da porta. Ela sabe que aquele momento vai assombrar sua família para sempre e afastar seus pais e sabe que recriá-lo não vai mudar o desfecho. Recriar é a vã tentativa de fazer sentido de sua própria experiência infantil de culpa.
Nem sempre a construção do filme funciona, na sua mistura de elementos. Mas cinema também é sobre se permitir embarcar em uma jornada dramática. Como uma narrativa que propõe de forma experimental investigar emoções complexas, Garça-Azul borra gêneros e embaralha tempos num turbilhão de memórias em busca por si, pelo outro, compartilhada.


Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo. Agradecemos em especial a: Carlos Henrique Penteado, Gizelle Barros Costa Iida, Helga Dornelas, Henrique Barbosa, João Bosco Soares, Janice Eleotéreo, José Gabriel Faria Braga de Carvalho, José Ivan dos Santos Filho, Lorena Dourado Oliveira, Lucas Ferraroni, Marden Machado, Mariana Silveira, Nayara Lopes, Patrícia de Souza Borges, Pedro Dal Bó, Vinicius Mendes da Cunha, Waldemar Dalenogare Neto, Zelia Camila de O. Saldanha

