[49ª Mostra de São Paulo] No Other Choice
Esse texto faz parte da cobertura da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 16 e 30 de outubro.
Um homem chega em sua bela e grande casa, com um gramado verde, árvores, dois cães de raça e uma família contente. Ele prepara um churrasco no quintal, com enguias que foram um presente de seu ótimo emprego. O outono está chegando, o clima é agradável e ameno, os quatro se abraçam felizes, mesmo que as crianças sejam mais resistentes a tanto afeto – como costuma ser -, e os animais correm ao redor. A vida é perfeita. Essa é uma descrição facilmente atrelada ao sonho americano, mas a família em questão está na Coreia do Sul e essa é a sátira que Park Chan-wook propõe ao moedor de carne capitalista, ironicamente arruinando toda essa felicidade de seu protagonista quando os empresários estadunidenses chegam até a indústria de papel em que Yoo Man-soo (Lee Byung-hun) é empregado, para uma demissão em massa.
O pai de família perde tudo logo após a introdução de No Other Choice, título mencionado em diversos diálogos, mas principalmente falado quase sem muito destaque por um dos norte-americanos que ignora Yoo Man-soo antes de cortar seu emprego. Sem o salário, a esposa (Son Ye-jin) faz cortes no orçamento da casa, atividades paralelas, serviços de streaming, aulas e até mesmo os cães, que são levados para morar com os avós. Há certamente um sentimento de castração desse homem, sem poder prover para os seus, preso em bicos carregando caixas após 13 meses desempregado e com a mulher precisando trabalhar para fechar as contas. É assim que, se negando brutalmente a mudar de vida, ele se agarra com unhas e dentes à chance de manter tudo exatamente como era antes.
Park Chan-wook elabora essa história dentro de uma comédia de erros, um thriller cômico com senso de humor bem pateta. Yoo Man-soo só enxerga uma escolha em seu caminho, aniquilar seus concorrentes no mercado de trabalho, para conquistar uma nova oportunidade no mesmo setor. Falar de um trabalho com papel já parece um tanto obsoleto, ainda que existam um sem número de usos que são eternos, independente do avanço tecnológico, no entanto, o filme faz diversas piadas com o uso de cartas e coisas do tipo, lembrando funções já ultrapassadas desse produto. A questão é que todos que trabalham nessa indústria, no universo de No Other Choice, são homens adultos que estão presos ao passado de qualquer forma, que se recusam a encontrar outros ramos, que são apaixonados pela produção específica desse material e que se encontram em um grupo sem perspectiva empregatícia.
Ao mesmo tempo em que Park Chan-wook, e seus outros três roteiristas, contam uma história que ri de si mesma, satiriza e provoca o riso das situações mais atrapalhadas e caóticas possíveis, a trajetória de Yoo Man-soo puxa a pessoa espectadora para uma reflexão mais profunda. Esse homem comum, de vida perfeita, não é um ser violento ou corrupto, mesmo assim, quem assiste será testemunha e cúmplice do rompimento gradual de sua alma. Na primeira tentativa de assassinato, partilhada intimamente em tela do plano inicial ao desfecho, o protagonista nem consegue de fato concluir a ação, mas tem sorte. Na segunda vez, ele ainda hesita, não tem a coragem necessária para matar e acaba cometendo o crime quase no susto. Já, na próxima vez, com ajuda do álcool, ele se mostra alguém cruel, com um proceder arquitetado e detalhista.
No Other Choice guia por esse pastelão (que lembra um pouco As Loucuras de Dick & Jane), alguma profundidade humana e social que parece interrompida, por vezes, pela comédia. É como se Park Chan-wook não quisesse se afastar do alívio cômico, mas também não pretendesse se divorciar completamente de suas ideias mais complexas. Dificilmente o longa vai até o fim quando as coisas estão mais sérias, rompendo com uma isca engraçada, porém pede da pessoa espectadora um comprometimento com suas críticas e reflexões sobre esse homem que é corrompido por um sistema sádico.
Se é comum que quem assiste acabe criando um vínculo tão forte com o protagonista, ao ponto de torcer por seu sucesso até mesmo quando isso fere outros personagens, aqui, o sentimento é mais agridoce. Há o riso pelas trapalhadas e a empatia com Yoo Man-soo, mas a torcida é quase sempre levada para outros caminhos, de que ele encontre outra alternativa que não a mais violenta. Ver o pai de família se tornar essa pessoa, na recusa de abrir mão da vida que tinha, beira a melancolia. Isso ocorre principalmente porque os homens que ele quer eliminar são pessoas como ele, que perderam muito, possuem suas próprias casas e famílias, casamentos quebrados pelo desemprego e filhos que querem ver crescer. A conexão com as vítimas é inevitável, gerando uma tristeza por essa situação geral da crueldade do capitalismo, que só não vem à tona completamente porque Park Chan-wook resiste, ou força até um pouco mais do que precisaria, na comédia, atravessando seus dramas.


Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo. Agradecemos em especial a: Carlos Henrique Penteado, Gizelle Barros Costa Iida, Helga Dornelas, Henrique Barbosa, João Bosco Soares, Janice Eleotéreo, José Gabriel Faria Braga de Carvalho, José Ivan dos Santos Filho, Lorena Dourado Oliveira, Lucas Ferraroni, Marden Machado, Mariana Silveira, Nayara Lopes, Patrícia de Souza Borges, Pedro Dal Bó, Vinicius Mendes da Cunha, Waldemar Dalenogare Neto, Zelia Camila de O. Saldanha

