
[49ª Mostra de São Paulo] Urchin
Este texto faz parte da cobertura da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 16 e 30 de outubro.
Urchin é uma gíria, uma maneira de rotular um jovem muitas vezes pobre e maltrapilho. Quando Mike (Frank Dillane) entra em cena, é exatamente isso que se vê, ou melhor, são suas costas, um corpo largado numa calçada, dormindo sem nada para o cobrir ou amenizar a dureza do chão. Já de cara, o personagem principal mostra o tom humorístico que o filme adotará. Em sua estreia na direção de longas, Harris Dickinson faz um retrato do ciclo de abandono e destruição que as pessoas passam nas ruas, mas tudo com alguma ironia, sem cair no pesar plano de alguns filmes independentes. É bem verdade que o que o cineasta faz conversa totalmente com esse tipo de cinema, no visual e na temática, mas seu bom humor e seu personagem cativante extraem algo mais instigante do que uma mera crítica social pautada na observação da miséria.
Mike vive nas ruas com poucas coisas, tem um conhecido que passa os dias de forma similar (o próprio Dickinson em um pequeno papel), e precisa se virar. Quando um estranho é gentil com ele, sua resposta é a violência, tentando tirar qualquer proveito da situação. O sistema não tarda em responder e sua prisão chega a galope. Urchin oculta os meses que o personagem passa recluso, cortando direto para seu retorno à sociedade. É como se, magicamente, essa reviravolta mudasse sua vida. Fica claro que não é a primeira vez que o homem passou por isso, ainda assim, após 5 anos morando na rua, parece ser a grande oportunidade de recomeçar. Não é à toa que tudo tem um tom jocoso, nada poderia ser tão bom para Mike.
Em pouco tempo ele encontra a autoajuda, um emprego de chef na cozinha de um hotel, faz amizade com colegas de trabalho e fica limpo dos vícios. Encaminhado para viver em um abrigo, em um quarto bem arrumadinho mas sem luz, a primeira preocupação de Mike com a assistente que cuida de seu caso é bastante sublinhada, para onde ele irá depois que sair dessa moradia temporária? Ela diz que ele não precisa pensar nisso agora. O sistema funciona, afinal, o mesmo que prende é o que desenha caminhos para o retorno à sociedade. Será? O senso de humor de Urchin já deixa claro, os bons momentos apresentados no maior estilo clichê, em câmera lenta, passeios com a cabeça para fora da janela do carro e celebrações iluminadas pela cidade são uma ilusão, tudo que Mike vive é apenas passageiro e artificial, sua vida real é dura e cruel.
Não demora até que os problemas cheguem. Forçado a encarar o homem que agrediu e roubou, o protagonista passa a ter momentos complicados e seu emprego não tem paciência de lidar com seus erros. Mike encontra outra oportunidade limpando lixos em parques e, gradualmente, o rapaz que fugia dos vícios e dos antigos conhecidos que lembravam sua vida tortuosa do passado recente, não consegue mais recusar tudo que o derruba. Aquele sistema que tinha um plano para ele, não tem mais caminhos, é inevitável cair novamente no lugar de partida em que a pessoa espectadora conheceu Mike.
Se há todo momento pareceu que qualquer horizonte otimista para o personagem principal era estranho demais, é porque a história proposta por Dickinson (escrita e dirigida pelo ator) vai quase nos moldes mais realistas de um cinema independente que busca a investigação social, dando destaque a pessoas marginalizadas, mas brinca justamente com essa perspectiva. Urchin não é uma obra que vai mergulhar na sujeira do ponto mais baixo em que as pessoas podem cair, para denunciar uma problemática, quando isso ocorre com Mike, inclusive, o filme retrata o personagem em ascensão, subindo escadas.
É essa ironia que o cineasta busca, com apoio de uma atuação cativante de Dillane. A situação precária e triste da sociedade que abandona tantos é, em Urchin, comicamente provocativa, pois sem alternativas ou perspectiva, o absurdo nem sempre precisa apelar desesperadamente à compaixão pela dor e miséria.

Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo. Agradecemos em especial a: Carlos Henrique Penteado, Gizelle Barros Costa Iida, Helga Dornelas, João Bosco Soares, Janice Eleotéreo, José Gabriel Faria Braga de Carvalho, José Ivan dos Santos Filho, Lorena Dourado Oliveira, Lucas Ferraroni, Mariana Silveira, Patrícia de Souza Borges, Pedro Dal Bó, Vinicius Mendes da Cunha, Waldemar Dalenogare Neto, Zelia Camila de O. Saldanha, Nayara Lopes.
