[49ª Mostra de São Paulo] Virtuosas
Esse texto faz parte da cobertura da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 16 e 30 de outubro.
Longa de estreia da cineasta catarinense Cíntia Domit Bittar, que vem de curtas como O Segredo da Família Urso (2014) e Baile (2019), Virtuosas segue uma recente onda do cinema brasileiro que parece tentar entender o fenômeno que une religiosidade e política, já presente em filmes como Divino Amor (2017) e Medusa (2021). Curiosamente todos eles são exercícios de cinema de gênero, porque às vezes parece que precisamos extrapolar a realidade para dar conta de tal tema, e esse interesse sempre recai sobre as mulheres.
Em Virtuosas, o roteiro é assinado pela diretora em parceria com Fernanda De Capua e a protagonista é Virginia Heinzel (Bruna Linzmeyer), uma espécie de coach para varoas valorosas, ensinando mulheres como se dedicarem à família e ao marido segundo os preceitos do Senhor. Em um culto-espetáculo, ela sorteia três participantes para que tenham uma experiência VIP: uma espécie de retiro privativo de alguns dias, exclusivíssimo, para uma imersão total nos seus métodos. As escolhidas são Lorena Canolo (Juliana Lourenção), esposa de um político que leva seu bebê junto; Barbara Rossi (Sarah Motta) e Germina (Maria Galant), que depois vai ser revelar uma jornalista infiltrada. Junta-se a elas Goreti (Brisa Marques), assistente (e fã) de Virgínia.
O encontro acontece em uma enorme casa isolada em meio à mata atlântica. O ambiente de confinamento afia as arestas entre as integrantes do grupos: elas têm muito em comum, incluindo uma ideologia de submissão, justificada por analogias estapafúrdias, mas existe, também, um constante jogo de comparação e competição. Cada uma precisa ser o tempo todo a mais adequada, a mais correta, a mais perfeita, afinal, a mais virtuosa. A contenção de gestos conversa com a paleta de cores do figurino elaborado por César Martins, em tons pastel, ressaltando uma estética esmaecida das personagens, ainda que suas vidas internas sejam um turbilhão.
A narrativa se vale do folclore manezinho das bruxas para construir uma crescente tensão no contexto de isolamento. Nada melhor na tradição cristã do que a vinificação da figura da bruxa, tão presente na Ilha da magia (e, nesse aspecto, senti falta do sotaque local). O medo da presença de uma bruxa na casa é explorado como um medo do outro: o mal encarnado, o inimigo a ser derrotado, a pura retórica da politização do cristianismo na década recente. Em contraposição, os discursos ensaiados para a câmera remetem a Esposas de Stepford (Stepford Wives. 1975) e mostram que meio século depois os ideais não mudaram, mas os modos de controle sim: as próprias mulheres observam, mediam o olhar e cerceiam os modos uma da outra. A vigilância faz parte do processo.
Há certos exageros: algumas falas saem do tom de um retrato que, no geral, preza pela proximidade com o real, embora flerte com o satírico em sua proximidade com o horror. De toda forma, a construção coletiva da atuação do elenco é de uma força que impressiona, com destaque para Juliana Lourenção, que precisa entregar notas cada vez mais intensas de fragilidade e descontrole.
O filme não propõe nenhuma saída fácil, Muito pelo contrário, sua catarse é o choque do alerta: as pessoas que se veem como bastiões de moral e detentoras da virtude tentarão eliminar o que entendem por mal. O desmantelamento gradual da convivência das personagens é apenas consequência. Em contexto de michelles e damares que nos assombram, Virtuosas extravasa no horror nossa realidade próxima.


Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo. Agradecemos em especial a: Carlos Henrique Penteado, Gizelle Barros Costa Iida, Helga Dornelas, Henrique Barbosa, João Bosco Soares, Janice Eleotéreo, José Gabriel Faria Braga de Carvalho, José Ivan dos Santos Filho, Lorena Dourado Oliveira, Lucas Ferraroni, Marden Machado, Mariana Silveira, Nayara Lopes, Patrícia de Souza Borges, Pedro Dal Bó, Vinicius Mendes da Cunha, Waldemar Dalenogare Neto, Zelia Camila de O. Saldanha
