[57ª Festival de Brasília] Criaturas da Mente
Este texto faz parte da cobertura da 57ª Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, que ocorre entre 30 de novembro e 7 de dezembro.
Marcelo Gomes, veterano do cinema, diretor de filmes como Cinema, Aspirinas e Urubus (2005) e Estou Me Guardando para Quando o Carnaval Chegar (2019), começa seu novo documentário, Criaturas da Mente (2024), relatando que, durante a pandemia de Covid 19, que assolou o mundo a partir do começo de 2020, ele percebeu que parou de sonhar. Questionando o sentido do sonho (e da sua falta), entrou em contato com o doutor Sidarta Ribeiro, biólogo e neurocientista, professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), onde coordena o Instituto do Cérebro. No laboratório, o principal tema de pesquisa é o sonhar.
Uma das propostas da pesquisa de Sidarta é o que ele chama ambígua e engenhosamente de criaturas da mente, termo que dá nome ao filme. Para o pesquisador, o sonho pode ser espaço não só para o descanso e reforço do aprendizado, mas também para o encontro com memórias, pessoas, ideários, que podem ser as referidas criaturas. É aí que entra, por exemplo, sonhar com uma pessoa que não está mais viva. Entender a extensão desse efeito passa por entender desde como os animais sonham (e sonham?) até como essas diferentes conexões cerebrais podem se manifestar de outras formas em termos biológicos.
Para isso, Sidarta extrapola o sonhar para outros estados de consciência alterada, como o transe. Pesquisador e cineasta encontram diálogo com mães de santo, com o xamanismo e os com os conhecimentos indígenas. Nesse sentido, o que interessa à pesquisa e ao cinema é a constatação deque essas manifestações ocorrem e passam pelo cérebro da pessoa que a manifesta (e daqueles que assistem?). E são esses processos que são possíveis de ser elaborados e entendidos, em uma exploração por temas que nem sempre a ciência abarca. O assunto, que poderia gerar explicações tecnicistas e um documentário burocrático, permite divagações mais amplas.
O filme une ciência e fé, arte e investigação, na curiosidade de expandir imaginários e fazer perguntas que não serão respondidas. Ele foi de encontro com o meu eu de cerca de uma década atrás. Morando há pouco tempo em Manaus, cursava como aluna especial no Mestrado de Antropologia a disciplina chamada Arte e Xamanismo, da professora doutora e etnomusicóloga Deise Lucy Montardo. Hoje percebo o quanto ela foi responsável por ampliar meus horizontes (e já a citei recentemente em minha crítica a Dahomey, documentário de Mati Diop). Ela ensinava sobre diversos modos de usar a arte, dos grafismos à música, como instrumento de cura por povos indígenas. E na época eu questionava: mas não acredito que é o desenho ou a cantiga, especificamente, que curam. Ao que ela explicava que isso é irrelevante. A pessoa antropóloga relata o que ela vê e o que ela vê, muitas vezes, é o rito. Como se processa a cura é assunto para outras ciências, mas o fato é que corpos estão engajados em práticas específicas e corpos as sentem. São esses ritos, e os sentidos e sentimentos neles organizado que, por sua vez, estabelecem essas relações. E, quem sabe, possibilitam sonhos.
Os ritos ordenam aquilo que não necessariamente nem a ciência nem o documentário vai tentar traduzir em respostas. O filme registra, inclusive, experimentações sensoriais. Marcelo se coloca diante das câmeras e, além de narrar o fio condutor, também se coloca como objeto da câmera. Se Sidarta se coloca em um experimento laboratorial de psicodelia, Marcelo dá um passo além do estudo e mergulha no rito da ingestão da ayahuasca, subjetivamente descrevendo o que viveu. Mariri e chacrona se unem possibilitando sinestesias e fosfenos xamânicos.
Esses experimentos funcionam especialmente fora da necessidade de ordenamento lógico. O pensamento ocidental nega o corpo (dos fluidos ao desejos). Mas ele também nega a mente: recusa veementemente qualquer possibilidade de não-linearidade de suas capacidades. Volta à minha memória a tal disciplina de Arte e Xamanismo. É claro que a expansão da mente se relaciona facilmente com a arte. Qualquer pessoa que já lidou com qualquer forma de expressão artística sabe, por exemplo, que fazer arte pode ser uma espécie de transe, de extravasamento de sentidos.
O filme joga perguntas e compartilha incertezas. Coloco-me diante dele como cética que sou em relação a respostas metafísicas, mas ciente de que eu mesma vivi a sensorialidade de certos ritos apresentados. A diferença entre cada pessoa retratada e, provavelmente, cada pessoa expectadora, é a forma como se ordena esse entendimento.
Como documentário, Criaturas da Mente foge das armadilhas fáceis e muitas vezes insípidas das entrevistas tradicionais, buscando formas de expressar visualmente aquilo que aborda. Marcelo Gomes não está preocupado em fechar respostas e definições, mas em expressar subjetividade (e até subconscientes). O importante é se abrir para sensações e possibilidades e tentar dar uma dimensão das capacidades humanas de tocar o onírico (de diversas formas). Como diz Sidarta, ao fim do filme, agora que os robôs chegaram, deixemos eles trabalharem para que a gente possa sonhar.