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[57ª Festival de Brasília] Salomé

Este texto faz parte da cobertura da 57ª Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, que ocorre entre 30 de novembro e 7 de dezembro.

Definido incialmente como um drama queer, Salomé, de André Antonio, é, na verdade, uma interessante mistura de gêneros que passa pelo melodrama, pela comédia, pelo romance, o noir e a ficção científica. A sinopse pode fazer parecer realmente um drama comum: Cecília (Aura do Nascimento, já uma estrela) é uma modelo de sucesso que mora em São Paulo, mas foi para a terra natal, Recife, passar o natal com a mãe, Helena (Renata Carvalho). Lá reencontra João (Fellipy Sizernando), que conhece desde criança, e nasce aí uma paixão criticada pela figura materna, que não considera o rapaz adequado à filha. Mas daí para frente o filme traz muitas surpresas.

As janelas e portas verdes da casa de Helena, com sua cozinha com cordões com macarrão amarrado nas pontas, rosas vermelhas, varal com roupas vermelhas, laranjas e amarelas, a trilha intensa de violinos (intercalada com uma música eletrônica marcante), tudo remete às cores de Almodóvar, numa antropofagia que regurgita uma estética camp que é nossa, muito brasileira.

Mãe é mãe. Helena chora com sua novela, ouve a novena pelo rádio e benze o quarto de Cecília com a água do copo abençoado. São detalhes de direção de arte e de caracterização que enriquecem a experiência, como o quarto de adolescente da protagonista, que ainda guarda bonecos de morcegos colados na parede, um poster da banda Evanescence e um do filme Jovens Bruxas. Essa estética gótica teen dialoga com a versão jovem adulta de Cecília, com seus cabelos pretos com franjinha curta e seus olhos com maquiagem marcada. As roupas pretas gradativamente ganham elementos em verde neon.

Isso porque João fornece um tipo de loló brilhante, em tom verde, que amplia os sentidos dos desejos de ambos. O logo, um coração sobre dois ossos cruzados, depois é revelado ser de uma seita alienígena que contrata garotos para atividades sexuais. João se define como “michê de seita”. No trabalho de ambos, seus corpos estão em jogo. Quando Cecília posa à lá Dietrich, encarna Salomé, numa mistura de Bíblia com cinema de sci-fi,, os olhos negros de Stepford Wives em um duplo seu que (também) é representação de luxúria. O imaginário cristão também aparece no retrato de João lindamente transfigurado em São Sebastião, conhecido como padroeiro informal e mártir das pessoas LGBTs.

Nesse sentido, alienígenas e humanos têm espaço para manifestarem seus desejos e seus fetiches. Sem amarras e julgamentos morais, o filme se abre para essa exploração, permitindo que tudo seja permeado por ambiguidade e fluidez. A cena de sexo, muito comentada e debatida, não deixa muito espaço para entender o corpo como um todo como um espaço de desejo, não há exploração de preliminares. Mas pelo menos encara e questiona a lógica de quais corpos são penetrados. A ênfase no cu como zona erógena é inclusiva, no sentido de que todo mundo tem cu. Por outro lado, conforme a pesquisadora de gênero e cinema Karla Bessa, “Escolher um cu revolucionário contra um falo tirânico é, no mínimo, tentar repor dicotomias que estamos justamente combatendo“. Não deixo de pensar na revolução que é Céline Sciamma realizar uma cena em que lugar do desejo é uma axila, em seu Retrato de Uma Jovem em Chamas. Divagações, ou, como diria Paul Preciado, “da filosofia como modo superior de dar o cu“.

De qualquer forma é interessante como no contexto da diegese Cecília e Helena, mãe e filha, são mulheres trans e isso nunca é uma questão. João performa uma masculinidade (e uma sexualidade) fluída, também sem maiores questionamentos. A amiga trans, a prima sáfica, todas as personagens são porque são. É um filme que celebra o viver. “O mistério do amor é maior que o mistério da morte”, como diz o slogan do loló.

Com um humor gostoso, e apesar do ritmo que às vezes demanda da pessoa espectadora, o filme trata de diversos temas sem que isso pareça forçado, mas com a leveza do fantástico (ainda que dialogando com um real) e da mistura de gêneros (em todos os sentidos). É um cinema que não se furta de experimentar e pensar adiante, em uma expressão de uma sétima arte que provoca. Salomé é um deleite para quem quer viver um cinema político que, entre tentativas e erros, propõe outros olhares possíveis.

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Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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