
[78º Festival de Cannes] Breves Comentários
Este texto faz parte da cobertura do 78ª Festival de Cinema de Cannes, que ocorre entre 13 e 24 de maio.
Rietland | Sven Bresser
Contemplativo, o filme belga-holandês faz do silêncio de seus personagens um estudo de observação e de conflitos ocultos, a respeito do desenrolar dos acontecimentos em um vilarejo rural e masculino. Um fazendeiro idoso encontra uma mulher morta em suas terras, e ao mesmo tempo que resolve procurar culpados e fazer justiça com as próprias mãos, lança olhares e expressa sentimentos que colocam em dúvida sua própria moralidade.
Parte da 64ª Semana da Crítica do Festival de Cannes, Rietland, dirigido por Sven Bresser, é visualmente impressionante e magnético. A imagem texturizada dos campos de trigo remete a pinceladas, como uma pintura em movimento, principalmente pelo efeito do vento sobre as plantações. Os planos abertos expressam tanto quanto os personagens, na medida em que amplificam o efeito de isolamento e evidenciam a solidão das pessoas dali.
Naquele local, habitado majoritariamente por homens distantes e idosos, paira a estranheza, percebida nas convivências sociais, e a desconfiança – a ocorrência do crime só faz aumentar essa atmosfera. Todos os homens são suspeitos apenas por representarem o gênero, e tal percepção faz o protagonista entrar num conflito interior silencioso, que fica muito claro em determinado momento, extremamente incômodo e tenso, em que ele se vê sozinho com uma jovem mulher.
O silêncio perturbador, uma constante no filme, é interrompido bruscamente pela trilha sonora ruidosa e por sons ambientes que o cortam, como o tic-tac incessante de um relógio (que dita a duração de muitas cenas em emulação ao nosso tempo como espectadores), ou o trator que avança ameaçador, símbolo da expansão capitalista das monoculturas. Por vezes, o diretor faz o oposto, descontinuando sons para impor uma quietude singular e desagradável.
Me surpreendeu muito saber que o protagonista é um ator não profissional. O mistério que ele consegue manter a respeito dos pensamentos de seu personagem, por nós, só são presumidos através de sua expressão dura, rústica e enigmática, bem como por suas atitudes impulsivas. O medo constante integra tanto a atmosfera de Rietland, como o próprio personagem, que observa o trigo balançando quase como um enigma que ele tenta desvendar, como se estivesse, o tempo todo, buscando por outro corpo, outra vítima, em sua plantação. Sven Bresser constroi, de fato, uma linda e estranha composição.


Two Prosecutors | Sergei Loznitsa
Em Two Prosecutors, que foi um forte candidato à Palma de Ouro do Festival de Cannes 2025, o cineasta ucraniano Sergei Loznitsa transforma a burocracia extrema e a paranoia do sistema stalinista autoritário de 1937, reflexo do período do Grande Terror (ou Grande Expurgo) vivido pela União Soviética entre 1937 e 1938, em ritmo fílmico. Estima-se que cerca de 1,5 milhões de pessoas foram presas à época, entre oposição e aliados, e aproximadamente 600 mil foram executadas, sob o manto da desconfiança extrema do líder.
Ante a desestabilização das instituições, em específico e de forma mais direta, a desorganização do Exército, Two Prosecutors acompanha um jovem promotor, Kornev (Aleksandr Kuznetsov) que resolve desamarrar os nós processuais e institucionais para atender ao clamo que ele encontra, ao acaso, numa carta de um prisioneiro, Stepniak (Aleksandr Filippenko), também promotor, desesperado por ajuda.
Até que cheguemos ao prisioneiro (e isso envolve ultrapassar muitas barreiras e pessoas intermináveis), o cansaço proposital e o esgotamento impostos pelo sistema mantém o filme num tom de desespero, evidentemente apropriado, por sua lentidão e inércia, e a abordagem da desumanização de pessoas nos sistemas prisionais diante de tamanha insegurança jurídica é poderosa – o longo monólogo de um prisioneiro idoso é, de fato, arrepiante. A partir daí, torna-se burocrático demais, inserindo-se em sua própria denúncia e com ela se confundindo.


Promis le Ciel | Erige Sehiri
A cineasta tunisiana Erige Sehiri, no filme de abertura da mostra Un Certain Regard, Promis le Ciel (coprodução entre França, Tunísia e Egito), aborda politicamente a problemática dos fluxos migratórios africanos modernos, a partir do ponto de vista não daqueles que se vão e suas vidas no exterior, mas dos que transitam e dos que permanecem em suas terras de origem.
A conexão da história entre três mulheres é que vai conduzir nosso olhar para a situação de quase suspensão de pessoas que estão constantemente em busca de vivências mais dignas – entretanto, a vida ainda pulsa, passa, e por elas é experimentada da melhor forma possível naquele contexto. Marie (Aïssa Maïga) é jornalista e pastora de igreja evangélica, e acolhe mulheres em situação de vulnerabilidade como Nané (Déborah Naney) e Jolie (Laëtitia Ky), pessoas exatamente localizadas nesse limbo migratório cruel que se infiltra entre a esperança e o desespero.
Caminhando sobre a falta de possibilidades e perspectivas de vida que tornam muito comuns a obtenção do sustento na ilegalidade, Promis le Ciel não se permite atrair pela tragédia. Assume como mote a resiliência feminina, com bom humor e doçura, equilibrando a seriedade necessária ao lidar com a bola de neve de problemas sociais que elas, como representantes de uma coletividade, precisam enfrentar.


Missão: Impossível – The Final Reckoning | Christopher McQuarrie
Se a franquia realmente se encerrará aqui, desconhecemos. Mas é fato que se assim o for, estará belamente sedimentada. Muito embora deixe ganchos para que novos filmes o sequenciem, McQuarrie não se compromete. É impressionante a capacidade do diretor de potencializar emoções e acontecimentos extraindo belezas e estabelecendo sequências, com o perdão do clichê, de tirar o fôlego – capacidade esta que é tamanha que disfarça ou torna irrelevante qualquer problema que o filme possa apresentar.
The Final Reckoning é um deleite cinematográfico, tem uma das melhores sequências do ano e lida com receios contemporâneos, como o domínio da IA e a perda de seu controle, a disseminação de fake news e suas consequências, guerra nuclear entre potências financeiras, para construir, com um maniqueismo típico, uma atmosfera de fim de mundo e fixar, como salvação única, essa simbiose Ethan Hunt-Tom Cruise.


Case 137 | Dominik Moll
Eu tinha esperanças de que Dominik Moll fosse seguir melhores rumos após o entediante The Night of the 12. Não se concretizou. Dossier 137, o filme mais neutro e protocolar da Seleção Oficial do 78º Festival de Cannes, retrata as investigações da truculência policial contra manifestações ocorridas nas ruas de Paris, que findou por ferir gravemente um jovem, pela policial Stéphanie (Léa Drucker), atuante na corregedoria da instituição. Enquanto ela encontra dificuldades na reunião de evidências a respeito da ocorrência de ilegalidades e abuso de poder cometidos por seus colegas, lida com problemas familiares e se vê pessoalmente envolvida na causa, o que lhe acarreta problemas para além das apurações que conduz.
O filme estabelece um ritmo constante, que não cresce nem decresce, justamente o que o torna cansativo e desinteressante. Moll alterna a colheita de depoimentos à vida privada da policial do modo mais genérico possível, usando de um humor insosso com a tentativa de revelar a ironia e a estupidez policial, repetindo essa fórmula a cada testemunha ou acusado que passa pela oitiva e crivo da protagonista.
Dossier 137 é tão circular que consegue padronizar o comportamento policial através de uma caricatura vilanesca pobremente trabalhada e pouco complexa – todos os policiais investigados, de algum modo, ironizam, debocham, negam fatos evidentes e mentem de forma inescrupulosa, sem qualquer consequência aparente. Não que assim não o seja, já que a violência policial aplicada contra, principalmente, minorias, é assustadora, e ainda mais grave em países como os Estados Unidos e o Brasil, em que a impunidade é a regra. Mas, Dominik Moll não enriquece o debate, não fornece qualquer estofo para que a protagonista seja, minimamente, levada a sério.
O tom levemente jocoso que o diretor imprime a Dossier 137, para torná-lo mais aprazível, reduz excessivamente a gravidade dos fatos investigados. O filme desperdiça talentos preciosos como o de Guslagie Malanda (Saint Omer), e contradiz sua própria denúncia contra o racismo policial ao vestir a atriz, justamente, como uma empregada doméstica que está ali apenas para fornecer a “prova que faltava” para conclusão do longa – o que é feito, inclusive, de modo absolutamente simplório e mal resolvido. Um filme que seguimos sem compreender porque foi inserido na competição.


Amrum | Fatih Akin
Na ilha alemã que dá nome ao filme, o menino de 12 anos Nanning (Jasper Billerbeck) vivencia, em 1945, o momento histórico que se inicia pouco antes da queda de Hitler até sua concretização. A atmosfera que se forma é instável, a recessão torna precário o alimento e traz a fome, e nesse contexto, o objetivo do garoto é satisfazer o anseio da mãe em depressão pós parto por alimentar-se de pão branco com manteiga e mel, enquanto observa a oscilação daquele povo entre comemorar a morte do regime nazista e manter-se fiel a ele.
Em Amrum, o diretor turco-alemão Fatih Akin apresenta, sob o olhar infantil de Nanning, enviesado pela família supremacista e pela obsessão pela obra literária Moby Dick, de Herman Melville, os limites humanos diante de um dos maiores crimes humanitários já cometidos, e as incertezas trazidas pelo abandono de pessoas que são, ao mesmo tempo, criminosas e vítimas.
O diretor utiliza do isolamento geográfico dos personagens para exacerbar, nos planos abertos, as sensações de insegurança, desconfiança e desolação daquelas pessoas em conflito interior. A paisagem costeira, muito embora invariavelmente guarnecida de beleza natural, torna-se ainda mais hostil e melancólica, parecendo nas cenas noturnas tomar uma forma mais confortável, na medida em que o diretor imprime um azulado forte e contrastante ao encontro entre o céu estrelado e o mar revolto.
A empreitada do menino que se arrisca, sem noção alguma de sua imprudência pela idade que o incapacita da plena compreensão de tudo, traz lembranças de Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, do mestre iraniano Abbas Kiarostami. O esforço infantil e inocente diante de um cenário que oscila entre a esperança e o desespero, é cortante. A máxima, expressada no filme através da fala “O que meus pais fizeram não é minha culpa”, aqui é posta em estudo por aqueles que mais sofrem e inconscientemente absorvem os traumas de um período histórico inapagável.


The Plague | Charlie Polinger
Um acampamento de polo aquático, um grupo de meninos. Esse é o “onde” e o “quem” suficientes a Charlie Polinger para a construção de The Plague, da mostra Un Certain Regard, como filme de horror. Ben (Everett Blunck) é um garoto sensível de 12 anos que se envolve, em prol de seu próprio pertencimento de grupo, na exclusão e perseguição de um de seus colegas, supostamente portador de uma doença de pele que eles referenciam como contagiosa, “a praga”. Entre a brincadeira e a crueldade, e, talvez, a crueldade disfarçada de brincadeira adolescente, o bullying escalona ao ponto do protagonista vacilar a respeito do que é real e do que é inventado pelos meninos.
Charlie Polinger usa do horror, e em muitos momentos, do horror corporal, para trazer à colônia de férias uma atmosfera crescentemente claustrofóbica e agressiva, causada, principalmente, pela hostilidade contra o isolado garoto. Transparece, por parte do diretor, um estudo sobre a construção e imposição de masculinidades desde a infância, e da mentalidade de rebanho que move esse micro coletivo ao grau da irracionalidade e da perda da empatia. Os meninos mimetizam o líder do bando e dele buscam aprovação, o que diz muito e faz refletir a respeito da inserção de um garoto doce como Ben nesse meio – pertencer é, obviamente, satisfatório.
The Plague bem aproveita o contexto do esporte para trazer cenas embaixo d’água que intensificam o tom sufocante e ansioso do filme. A trilha sonora, tão barulhenta quanto os meninos, torna a permanência naquele espaço quase que insuportável, equilibrada ora pela ternura que persiste em Ben, ora pela presença conciliadora do treinador Wags (Joel Edgerton). O senso de inclusão masculino é, invariavelmente, ligado ao grupo – e Charlie Polinger vai nos levar ao ápice da tensão e da aflição para demonstrá-lo.


Mirrors nº 3 | Christian Petzold
Há algo no olhar de Paula Beer, atriz que protagoniza muitos dos filmes do alemão Christian Petzold, que é muito dúbio. Ao mesmo tempo que parece estudar profundamente aquilo que observa, soa vago. O enigma, e talvez por consequência, a fascinação por sua escalação frequente, seja a dúvida. Ela julga? Ela acolhe? Ela desafia? Ela compreende? O que ela enxerga, se é que enxerga? Isso a faz, mais uma vez, a atriz correta para Mirrors nº 3, filme que passou quieto pela Quinzena dos Cineastas no Festival de Cannes 2025. Beer é Laura, uma mulher deslocada em seu relacionamento que, durante uma viagem, milagrosamente sobrevive a um grave acidente de carro com poucos arranhões. No local, ela é acolhida maternalmente por Betty (Barbara Auer), e aos poucos, por seu filho e marido, ali permanecendo e tornando-se parte da família.
Como o próprio título revela, Mirrors nº 3 vai trazer o espelhamento de identidades e pessoas, de expectativas e realidades. Nesse acolhimento, nessa rotina familiar que se forma, paira a estranheza, a sensação de que, em que pese a harmonia que custa a se firmar, há algo importante fora do lugar, uma vez que a permanência de Laura não soa natural. Trata-se de uma sensação muito característica do cinema de Petzold, que consegue imprimir, ainda, certo aspecto onírico a essa nova vida que surge após o acidente, como um renascimento.
É interessante como a conexão entre Laura e Betty se estabelece, inicialmente, como algo muito feminino e inexplicável, para depois assumir-se maternal e um tanto obsessiva. O Christian Petzold de Mirrors nº 3 entrega muitos sinais de sua trama que conduzem a obra a certa obviedade que não lhe é comum. Mas, ainda assim, é sempre um deleite prestigiá-lo.


Eagles of the Republic | Tarik Saleh
O cinema de propaganda como arma de manutenção de governos autoritários e a complexidade de se impor contra a própria arte, neste caso, encomendada. Eagles of the Republic, longa da Seleção Oficial de Cannes 2025 dirigido pelo sueco de origem egípcia Tarik Saleh (Garoto dos Céus), assume certa grandiosidade para inserir uma série de conflitos e tensões que pairam sobre o protagonista George Fahmy (Fares Fares), um estimado e famoso ator que é pressionado a estrelar um filme feito a mando das autoridades egípcias. Enquanto lida com as ameaças e a insegurança após aceitar o papel, o ator enfrenta problemas de relacionamento com o filho, com a namorada e inicia um caso com a esposa, justamente, do general responsável pelo filme.
Eagles of the Republic busca se fundamentar no que seria uma envolvente trama política de conspirações e perseguições, colocando o ator-protagonista na dúbia necessidade de atender ao clamo do governo, sendo, entretanto, contra ele. Contudo, muito embora enriqueça com o carisma de Faris Faris, que traz doses de humor certeiras em meio aos atritos, o longa apresenta dificuldades em submeter seus conflitos, de modo que pouco nos preocupemos com seus personagens e destinos. Mostra-se, assim, um emaranhado de acontecimentos que Tarik Saleh não consegue conectar, mas que instiga como instrumento de luta pela sobrevivência da liberdade artística e pelo visual um tanto refinado.


Eleanor the Great | Scarlett Johansson
O Festival de Cannes 2025 foi palco para que muitas estrelas hollywoodianas fizessem suas estreias na direção de longas metragens. Assim o foi com Kristen Stewart e seu disputadíssimo The Chronology of Water, com o Urchin de Harris Dickinson, e com Scarlett Johansson e o meigo, porém ordinário, Eleanor the Great, que levou June Squibb, sua protagonista, no auge dos 95 anos, aos holofotes e aplausos de uma repleta sala Debussy, onde foram reproduzidos os filmes da mostra Un Certain Regard.
Squibb é a Eleanor do título, uma senhora de 90 anos que divide o mesmo teto e uma rotina de vida harmoniosa com a melhor amiga, Bessie (Rita Zohar), na ensolarada Flórida. A relação adorável das duas senhoras é interrompida pelo falecimento de Bessie, dando-se início, assim, à trama dramática de superação da protagonista, que se vê obrigada a mudar-se para a urbana Nova Iorque para viver com a filha, lidando com a mudança brusca de cotidiano e a dor do enlutamento. Vai obter algum refúgio ao encontrar, por acaso, um grupo de apoio e mútua ajuda formado por sobreviventes do holocausto, assumindo uma personalidade e contando histórias que não são suas, por sentir-se acolhida e inserida naquele seio comunitário.
Eleanor the Great é típico do que chamamos, no Brasil, de “filme de sessão da tarde”. Cativa, naturalmente, pela presença forte e doçura absolutas que June Squibb transmite à sua Eleanor, o que torna quase impossível, no mínimo, não fazer esboçar um sorriso ou causar um calor afetuoso no coração. Mas isso é tudo que o filme tem a oferecer, de modo que apela ao emocional e depende excessivamente do carisma para sustentar um caminho vazio e óbvio que prefere seguir, através de uma direção pouquíssimo inventiva de Johansson.
Só não é ingênuo porque consegue disfarçar bem sua própria carência de complexidade ao tentar arrancar lágrimas do espectador. Eleanor the Great é uma obra tola e adoravelmente vazia.


Karavan | Zuzana Kirchnerová
Um dos últimos filmes da mostra A Certain Regard a ser exibido no Festival de Cannes 2025, o tcheco Karavan, dirigido por Zuzana Kirchnerová, usa de um naturalismo poético para nos apresentar a maternidade solo através de Ester (Anna Geislerová). Motivada pela sobrecarga da rotina e da vida, a mulher rouba um trailer para nele viver com seu filho, David (David Vodstrčil), pessoa com deficiência intelectual. Percorrendo o sul da Itália, ela conhece, em uma festa, uma mulher de espírito livre, Zuza (Juliana Ol’hová), com quem passam a dividir a estrada e os cuidados com o filho.
Karavan soa muito promissor ao abordar os desafios da responsabilidade e esmero dedicados a familiares com deficiências intelectuais que demandam atenção por toda uma vida e, ainda, por trazer, nesse contexto, uma representação familiar monoparental não-padronizada socialmente. Ester já não é mais uma jovem mãe, e a diretora dá a ela, em que pese a precariedade e instabilidade social e financeira, desejos sexuais e ânimos para viver sua vida com esperança e autossuficiência, na medida do possível.
Busca ser sensível, ainda, ao não omitir o comportamento instável de David, cuja neurodivergência o permite olhar para seu entorno e para si mesmo de modo que se sinta à vontade para obedecer seus impulsos emocionais e sexuais onde quer que esteja. É, na mesma medida, carinhoso, inocente e violento – e é notória a falta de preparo da sociedade que insiste em não se adaptar ao comportamento de pessoas como David e acolhê-lo.
Ao tentar, entretanto, ser acolhedor, Karavan é problemático e inconsistente. Desenha David de modo capacitasta e estereotipado, como alguém que apenas demanda cuidados. Muito embora os momentos de ternura estejam ali, nos parece que há uma tendência a ignorar qualquer autonomia que o garoto possa ter. No mais, ao trabalhar o ímpeto sexual do personagem, a diretora imprime um erotismo estranho e não natural no tratamento do menino pelas duas mulheres, de tal forma que onde deveria haver naturalização, há incômodo.
Isso sem mencionar, ainda, o racismo carregado em algumas falas. Apenas a título exemplificativo, quando estão numa praia privada (e não demorará para que sejam expulsos com hostilidade), enquanto a mãe passa protetor solar no filho, Zuza alerta para que o faça bem, para que o menino não fique “muito escuro”.
Karavan pode ser pertinente por se impor perante uma sociedade restrita ao gritar a existência de pessoas como David e Ester. No entanto, perde-se a diretora na humanização de seus personagens e na condução do que seria o sexo natural e o sexo erótico representado em tela.


Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo e patrocínio. Agradecemos em especial a: Ana Carolina Ballan Sebe, Caio Pimenta, Eduardo Filho, Lucas Ferraroni, Maria Eliana Pilon, Renata Boldrini, Thiago Bocanera Monteiro, Tiago Maia e Wellington Almeida;
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