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[78º Festival de Cannes] Highest 2 Lowest

Este texto faz parte da cobertura do 78ª Festival de Cinema de Cannes, que ocorre entre 13 e 24 de maio.


Spike Lee é um mestre obcecado e reverente a seus próprios gurus. De fato, todo aluno assim o é, de certa maneira, pelo menos, até que se aprenda a caminhar com as próprias pernas. Apaixonado, deferente, mas nunca submisso, Lee ocupa, hoje, o elevado status de ser, ele mesmo, professor, por trilhar seu caminho com peculiaridade, respeitando e, na mesma medida, desafiando obras de prestígio consolidado. Discípulo da Universidade de Nova Iorque e pupilo de Martin Scorsese, no primeiro ano do curso de cinema realizou um filme intitulado The Answer, uma espécie de resposta elaborada contra O Nascimento de Uma Nação, de D.W Griffith, sucesso absoluto de 1915 e divisor de águas na história, e que foi, inegavelmente, um dos responsáveis pelo ressurgimento de uma Ku Klux Klan já adormecida na época, ao glorificar as atividades do grupo supremacista e reacender, assim, o movimento.

Em The Answer, o diretor conta a história de um roteirista negro que é contratado para um remake de O Nascimento de Uma Nação. Lee aproveita para inserir trechos do filme de Griffith como provocação e denúncia quanto ao criminoso desserviço promovido em desfavor da população afro-americana, que sofreu com as consequências da existência da obra para além das telas – o triunfo do cinema em detrimento de vidas negras.

Isso não significa que Lee tenha desprezado os feitos cinematográficos de D.W Griffith. Pelo contrário, sabe e reconhece que são incontestáveis do ponto de vista técnico e criativo, e não nega sua contribuição para aquilo que conhecemos por cinema depois dele. Acontece que Lee, como um cineasta negro ocupando, como primícias, espaços majoritariamente brancos, que não abandona a consciência racial e a luta antirracista e que utiliza do cinema que realiza como instrumento social, é um questionador inato, e não é exagero dizer que sua genialidade é suficiente para que, da mesma forma como se sentiu confortável com The Answer em 1980, ganhando, por sua ousadia, o apelido de “encrenqueiro”, não hesita em se colocar ao lado de uma de suas maiores inspirações, Akira Kurosawa, para recriar o icônico High and Low e apropriá-lo aos seus próprios moldes, ao seu específico estilo, com Highest 2 Lowest, que fez estreia no Festival de Cannes 2025. O diretor volta a ser destaque no festival quatro anos depois de presidi-lo na Seleção Oficial, em plenos tempos pandêmicos, em 2021.

Não é a primeira vez que o diretor homenageia o cineasta japonês, e especificamente, High and Low. Já lhe havia feito referência em Febre da Selva, através da emblemática sequência do Taj Mahal, o inferno na Terra dos viciados de crack. Highest 2 Lowest vem tornar indubitável o conforto de Spike Lee com seu próprio cinema. Se afasta, certeiramente, da formalidade e seriedade do clássico, para lhe atribuir uma roupagem muito própria, muito Spikeleeana, se assim o podemos brincar e dizer, com direito à planos filmados em double dolly, sua marca registrada na direção, num close de Denzel Washington – assisti-lo é um privilégio, algo fabuloso.

A versão estadunidense do clássico japonês, nas mãos de Spike Lee, só poderia estar geograficamente localizada onde ele se sente em casa. Nova Iorque é palco para que, em alusão à expressão do título, do maior para o menor, o magnata interpretado por Denzel Washington seja obrigado a deixar sua zona de conforto e descer até onde encontrará o povo que lhe é tão distante. 

Se em High and Low, o milionário protagonista é empresário de uma grande fabricante de sapatos num Japão em ascensão econômica pós-guerra, em que se discute abrir mão da qualidade do produto para aderir a produção em massa, em Highest 2 Lowest Washington é David King, magnata do ramo da música, que luxuosa e muito confortavelmente vive com sua família tradicional nas alturas de um dos arranha-céus da cidade. É casado com a belíssima e elegante Pam King (Ilfenesh Hadera), e pai do jovem e promissor Trey King (Aubrey Joseph). O diretor vai introduzir seu longa nos mesmos planos gerais de Kurosawa, mostrando-nos uma cidade grandiosa, agitada e em pleno progresso, para nos localizar acima dela, sob o olhar dos privilegiados. Quando um sequestro coloca a estabilidade familiar em altíssimo risco, o patriarca King se vê diante de um cenário que dá a ele o poder de decidir entre a vida e a morte, entre a manutenção de seus privilégios e sua iminente perda.

Ocorre que o privilegiado em questão é um homem negro, mais especificamente, uma família negra de poderio inquestionável. Se a clássica dualidade entre a valoração da vida perante o capital é trabalhada por Kurosawa em 1963 de modo que o contexto permite que a moralidade seja mais diretamente discutida, Spike Lee traz a raça como um elemento que inequivocamente torna a discussão mais complexa. Não se trata mais de uma luta exclusiva de classes, mas de uma interseccionalidade de dilemas sociais que vão encurralar o espectador ao julgamento, para que ele mesmo questione-se dos seus motivos para tal.

Tal como no clássico, King precisa deliberar se paga o exorbitante valor exigido pelo resgate do filho de seu empregado (e, portanto, de um homem negro de classe social desfavorecida) Paul Christopher (Jeffrey Wright), ou se omite-se para arriscar a vida do jovem em benefício de não empobrecer. Sua escolha vai colocá-lo num papel muito mais ativo do que o dado ao protagonista japonês: King resolve trabalhar lado a lado com a polícia na operação do resgate, virando uma espécie de heroi e justiceiro não apenas por abrir mão do capital, mas por, justamente, deslocar-se para baixo, descer, ir ao encontro das ruas, veja só, do Brooklin.

Em abordagem e ritmo semelhantes aos que movimentaram o popular O Plano Perfeito (Inside Man), de 2006, e com inspirações evidentes em Operação França, de William Friedkin, de 1971, Lee constroi para King e Christopher uma relação de parceria e camaradagem ao estilo buddy cop, contrastada pelas diferenças de classe. No lugar da Nova Iorque suja de Friedkin, ou da narrativa exclusivamente policial de O Plano Perfeito, o diretor coloca a dupla em meio a multidões vibrantes de uma comunidade majoritariamente porto-riquenha, encontrando espaço para homenagear Rosie Perez, verdadeiro símbolo de Faça a Coisa Certa, e Anthony Ramos, seu colaborador na série Ela Quer Tudo.

A troca do ramos dos negócios, os sapatos pela música, constitui-se outro elemento de apropriação que atribui negritude à releitura de High and Low. Lee toma plena liberdade para inserir, sem medo, temas que lhe são caros e que dizem respeito ao seu próprio estilo cinematográfico. David King é um workaholic, tal como Kingo Gondo de Kurosawa, trabalhadores que ascenderam ao mais elevado dos patamares financeiros, cada qual em seu ramo empresarial. No entanto, diferentemente de Gondo, que se recusa a ceder aos sapatos de má qualidade e à economia do descarte, King se vê no piloto automático dos negócios, e a busca que se torna exclusiva por lucros o faz perder a excitação de outrora. Sua jornada de descida é, assim, também uma redescoberta de suas origens, inclusive, musicais. 

Ao final é onde Highest 2 Lowest mais vai se aproximar de Kurosawa. A classe falará mais alto que a raça, e o desejo punitivo prevalece perante o embate fabuloso do protagonista perante Yung Felon, personagem de A$AP Rocky. As grades da prisão que separam sequestrador e magnata em High and Low, no ápice do discurso moral e da denúncia da obra, nas mãos de Spike Lee, tornam-se telas divididas que funcionam como palco para um duelo de rimas que vão evidenciar que, nos moldes capitalistas, há punição, e no conflito entre classe e raça, havendo heroísmo ou não, a palavra final é do mais forte.


Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo e patrocínio. Agradecemos em especial a: Ana Carolina Ballan Sebe, Caio Pimenta, Eduardo Filho, Lucas Ferraroni, Maria Eliana Pilon, Renata Boldrini, Thiago Bocanera Monteiro, Tiago Maia e Wellington Almeida;

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Advogada, crítica de cinema, editora e cofundadora do Coletivo Crítico. Membra do Júri da Latin American Critics Awards for European films.

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