[49ª Mostra de São Paulo] Morte e Vida Madalena
Esse texto faz parte da cobertura da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 16 e 30 de outubro.
A arte do cinema é morte e vida, na ordem exata que Guto Parente apresenta em seu novo filme. Quando o pai de Madalena (Noá Bonoba) morre, seu funeral abre o longa, com caixão no palco e uma plateia vazia. A pessoa espectadora está do outro lado, nos bastidores da encenação, porque a viagem que Morte e Vida Madalena propõe é sobre a feitura artesanal do cinema independente, essa faroeste em que a grana é pouca, a paixão é muita e só sobrevive quem é forte pra aguentar o tranco. Assim, a protagonista vivida intensamente por Bonoba carrega no ventre a vida, enquanto atravessa a morte com a determinação em apenas um foco: gravar o roteiro deixado pelo pai.
A ficção científica independente, o filme dentro do filme, precisa apenas de uma pessoa para dirigir, já que Madalena é produtora e fica com todas as burocracias para resolver. O marido, que tomaria as rédeas, foge no primeiro dia de filmagens, largando toda uma equipe na mão. A mulher, grávida de mais de 8 meses, precisa dar vida a um texto, antes de trazer ao mundo mais uma pessoa. Parente se concentra nesses bastidores, jogando luz (com muito humor) em cada etapa e nas problemáticas enfrentadas, da luta para conseguir o dinheiro necessário para o filme, e receber de fato os apoios já garantidos, seguir cronogramas, arranjar equipamentos e objetos e lidar com o fator humano.
Se é mais comum dizermos que um filme é de alguém que o dirige, sem esquecer da equipe ao redor, como Morte e Vida Madalena é de Parente, a obra dentro da obra chega mais ou menos nessa mesma conclusão, só que por outras vias. Madalena bate firme o pé, aquele é seu longa e ela só precisa de alguém para comandar as filmagens. A produtora aqui é quem assume a autoria, embora passe boa parte das cenas em telefonemas estressantes, conversas desgastantes e soluções de burocracias e problemas, distante do set. Ela se recusa a ser a diretora, mesmo que todos achem essa a melhor alternativa. É só quando Madá finalmente cede e pega o posto de comandante atrás das câmeras, que o projeto vai pra frente.
A visão artística da protagonista pouco importa a Morte e Vida Madalena, é sua correria para colocar as engrenagens no lugar que tem o foco. Assim como sua maternidade é desromantizada, colocada como mais uma etapa comum, e relacionada ao processo de produção do filme. O cinema vai da morte até a vida, o luto gera uma obra e seu nascimento é, ironicamente, o desfecho. Talvez a arte vá mesmo nessa contramão da vivência linear das coisas.
Parente usa esse longa como um manifesto apaixonado por seu trabalho, dando espaço para que cada personagem tenha seu momento, dando destaque às funções de uma equipe cinematográfica. O rapaz do som quer liderar uma greve pelos atrasos nos pagamentos, a assistente de direção não consegue interferir nas decisões peculiares de um dos diretores (o ator completamente fora da casinha), a diretora de fotografia segue as instruções para colocar ou tirar a cor em diferentes cenas, assistentes não testam armas, roteiros são alterados no meio da gravação e por aí vai. Tudo que pode sair do controle no filme de Madalena acontece, mas sua equipe permanece.
Vê-se que há muito de Parente em Morte e Vida Madalena, mas de uma maneira afetiva. Seu ego fica de fora para que todos possam brilhar, principalmente Bonoba, que dá vida a uma Madalena de personalidade forte, com a determinação necessária para finalizar um filme lutando pela grana e vencendo cada obstáculo. Se o cinema em si já é um ofício complicado, o cinema independente é um velho oeste em que o pistoleiro só vence o duelo com o trabalho coletivo de sua equipe, e muita paixão por cada munição. Madalena é essa heroína nada solitária, navegando em um cenário que ri – e faz rir bastante – das dificuldades extraídas da realidade. Viva a produção independente brasileira e suas Madalenas.


Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo. Agradecemos em especial a: Carlos Henrique Penteado, Gizelle Barros Costa Iida, Helga Dornelas, Henrique Barbosa, João Bosco Soares, Janice Eleotéreo, José Gabriel Faria Braga de Carvalho, José Ivan dos Santos Filho, Lorena Dourado Oliveira, Lucas Ferraroni, Marden Machado, Mariana Silveira, Nayara Lopes, Patrícia de Souza Borges, Pedro Dal Bó, Vinicius Mendes da Cunha, Waldemar Dalenogare Neto, Zelia Camila de O. Saldanha.


