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[78º Festival de Cannes] O Agente Secreto

Este texto faz parte da cobertura do 78ª Festival de Cinema de Cannes, que ocorre entre 13 e 24 de maio.


Após a exibição de O Agente Secreto no 78º Festival de Cannes, evidencia-se com muita clareza a costura criativa que Kleber Mendonça Filho vem tecendo desde Retratos Fantasmas. Não só um é o embrião do outro, mas há uma complementação entre os projetos no que parece ser um intuito maior de realizar um cinema de preservação de memórias e identidades. O documental se torna matéria para que o diretor transite para o ficcional, utilizando-se de elementos muito característicos de seu cinema, transmitindo ao espectador lembranças que lhe são muito pessoais, mas que podem ser apropriadas para tornarem-se, diga-se, do povo, colaborando para a criação de um imaginário coletivo rico, com estofo suficiente para ser capítulo representativo de nossa história. 

No Brasil setentista em ritmo de carnaval, Marcelo (Wagner Moura), um especialista em tecnologia e diretor de departamento universitário no Recife, é um homem na estrada. Com seu fusca amarelo, ele faz uma pausa num posto de gasolina isolado, onde as únicas figuras presentes são um frentista que trabalha só e em turnos desumanos, e um corpo em decomposição que, há dias, aguarda alguma providência policial, enquanto incomoda o olfato dos transeuntes. A longa sequência que dá início a O Agente Secreto funciona com uma paranoia, causada pela lentidão aparente do tempo que parece não conseguir avançar em meio ao sol, ao suor, as roupas encharcadas, as moscas e a conversa mole. Marcelo vai percorrer a estrada nessa trégua de tempo, e seu destino é voltar para casa e se reunir com o filho pequeno para o início de uma vida nova.

O posto de gasolina se torna palco para que uma série de acontecimentos que soam como desconexos ditem a atmosfera de estranheza e desconfiança que vai permear o longa como um todo. O carnaval é uma oportunidade para que o diretor encontre nas figuras fantasiadas o tempero brasileiro de um prato cheio de cultura regional, de lendas urbanas, de folclore, que conseguem nos informar que há, ali, algo fora do lugar. A la ursa, personagem carnavalesca típica do Nordeste, dando suas caras no vidro do carro de Marcelo é algo de bizarro e assustador a permanecer habitado nos imaginários populares e ser recordado no meio da noite.

A lenda da perna cabeluda que assombrava crianças no Recife, caminhando decepada através de pulinhos, teve seu auge nos anos 70, e em O Agente Secreto, é encontrada dentro de um tubarão. Kleber Mendonça Filho homenageia o cinema setentista e o filme de Spielberg contextualizando não só o sucesso de Tubarão com a ida das pessoas ao cinema, mas também ao regionalizar a temática estrangeira com a referência aos conhecidos ataques de tubarão recifenses. É como se o período histórico colaborasse e se encaixasse com perfeição ao propósito e estética cinematográfica do diretor.

O tal algo fora do lugar é silencioso, mas dita sentenças e define destinos de forma impositiva e violenta. Naquele específico momento em 1977, o país experimentava os horrores do regime militar, cujos métodos, no contexto fílmico, são ocultos pelo aparente clima festivo do carnaval, executando manobras para muito além da farda e atuando, como é no caso do filme, nas universidades, espaços primeiros onde mais se luta contra o regime e, portanto, os que primordialmente são atingidos. 

Em que pese a opressão e o controle arbitrário imposto pelo militarismo, e a inevitável selvageria que lhe é inerente, O Agente Secreto vai se dedicar mais ao caráter de humanidade daqueles que fazem parte da luta antifascista do que às suas truculências. Interessa-lhe mais o material humano, as pessoas ao redor de Marcelo que, assim como ele, vivem uma realidade de fuga, de esconderijos, de identidades falsas e que mutuamente se auxiliam.

A humanidade brasileira constitui uma especificidade regional que se faz muito presente nas obras pretéritas de Kleber Mendonça Filho, e a atenção que sua câmera dá a essas figuras abre portas para um estudo de povo que traz às telas um magnetismo, uma atração como imagem cinematográfica. Aqui, seu filme vai encontrar essa característica num misto de personalidades que vai ultrapassar as fronteiras, principalmente, na figura das mulheres. 

A esse respeito, há, por um lado, os nomeados “refugiados”, pessoas em semelhante situação do protagonista, e há, de outro, Dona Sebastiana (vinda diretamente de Bacurau), icônica personagem que é ficcional, mas que, ao fim, interpreta a ela mesma. O Agente Secreto concede aos refugiados espaço para que, por meio de uma paciente conversa, que inicia-se na desconfiança e vai abrindo-se ao acolhimento como um lugar seguro, debata-se a importância da preservação da memória, e da defesa das identidades, justamente, por aqueles que, por segurança, se veem obrigados a negá-la. Nesse grupo, fica claro que não só brasileiros, mas também estrangeiros, sofreram com a opressão vinda de todos os lados – especificamente, na figura de Teresa Victoria, personagem de Isabél Zuaa. Dona Sebastiana, por seu turno, é uma imagem natural de cinema, um ímã ao nosso olhar. Kleber Mendonça Filho vai atribuir a ela o papel de uma espécie de líder desse grupo desgarrado, direcionando, orientando, mantendo a engrenagem da luta em andamento.

Não é à toa que, capitulando seu filme em O Agente Secreto, o segundo tenha sido nomeado Instituto de Identificação. Não é, notoriamente, despropositado, que Marcelo, designado a trabalhar no local, esteja em busca dos documentos de sua mãe. Nossa existência foi burocratizada. Aquilo que não depende de um título, de um documento que se encaixa no bolso, cabe à memória preservar. Kleber Mendonça Filho enfrenta estratégias de apagamento de identidades e de existências com mãos afetuosas que agarram, com força, a câmera como uma arma – e com isso, defende todo um povo.


Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo e patrocínio. Agradecemos em especial a: Ana Carolina Ballan Sebe, Caio Pimenta, Eduardo Filho, Lucas Ferraroni, Maria Eliana Pilon, Renata Boldrini, Thiago Bocanera Monteiro, Tiago Maia e Wellington Almeida;

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Advogada, crítica de cinema, editora e cofundadora do Coletivo Crítico. Membra do Júri da Latin American Critics Awards for European films.

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