
[78º Festival de Cannes] Partir Un Jour
Este texto faz parte da cobertura do 78ª Festival de Cinema de Cannes, que ocorre entre 13 e 24 de maio.
A primeira sessão do primeiro Festival de Cannes a gente nunca esquece. Partir Un Jour, primeiro longa-metragem de Amélie Bonnin, ocupou esse espaço e esse status de memorabilidade – unicamente por ter sido selecionado para a abertura do 78ª edição do festival. Inspirado no curta-metragem da diretora que leva o mesmo nome, e carregado de homenagens nostálgicas a canções francesas famosas, inclusive, a música homônima Partir un Jour, do grupo 2 BE 3, o filme acompanha Cécile Béguin (interpretada pela cantora e compositora Juliette Armanet), uma chef de cozinha que fez sua fama no programa televisivo Top Chef, a ponto de inaugurar, em Paris, seu próprio restaurante, desejando nele servir o prato perfeito. No auge de sua carreira e criatividade, ela se vê, concomitantemente, diante de um problema pessoal e de uma emergência familiar que demandam que ela volte para sua terra natal, na casa de seus pais, onde precisa enfrentar lembranças e memórias afetivas que a fazem questionar e refletir sobre o seu presente e as decisões que ela precisa tomar.
Amélie Bonnin encontra no musical o formato a atender (ou que deveria atender) seu clamor de reverência ao passado a partir da união de elementos nostálgicos tanto em sua temática quanto em sua proposta fílmica. O esforço da diretora para homenagear certa geração de músicas francesas mostra-se, justamente, aquilo que a fará fracassar como gênero – Partir un Jour é uma comédia romântica negativamente cafona, insossa, e mesmo como musical, consegue ser executada da forma mais genérica possível.
Há, de fato, uma gama de esforços mal sucedidos nesse longa de estreia. Partir un Jour se empenha como musical, mas traz atores e atrizes desconfortáveis ao gênero, não pela falta de habilidade vocal (o que não é, absolutamente, um problema), mas pela falta de expressividade e imposição corporal necessários, e diga-se, mínimos, para que o objetivo do gênero seja alcançado. Se o musical, para o filósofo Gilles Deleuze, possui como premissa a ideia de transportar os personagens para o nível do sonho, inserindo-os no tempo puro do mundo onírico, cuja cronologia não é e não pode ser a nossa, cronometrada pelos relógios, aqui, o que há é a mera reprodução de um cotidiano musicado que nunca consegue ser elevado ao status de suspensão do tempo. Não há emoção, não há sentimento que justifique ou sustente sua ideia. O que fica é apenas a cafonice e uma pontada de constrangimento por seu empenho e fraco entusiasmo em parecer apenas desejar agradar aos fãs das músicas que inspiram seus números.
Partir un Jour parece se dedicar, ainda, em ser referenciado como feminista. Os dilemas da protagonista, que precisa deixar, por um período, uma carreira de sucesso em suspenso para lidar com uma gravidez indesejada e com o infarto do pai, inserem alguns contrapontos óbvios que, até certo momento, são pertinentes: o estresse do trabalho e o lazer, seu sucesso profissional e a proximidade da aposentadoria dos pais, a gravidez e a decisão pelo aborto, o relacionamento estável do presente e o amor mal resolvido do passado, são oposições que tentam reproduzir impasses comuns às mulheres entre 30 e 40 anos. No entanto, algumas escolhas de roteiro tornam seu propósito político um tanto duvidoso.
Cécile não compartilha a novidade e inconveniência da gravidez com o marido que é, também, seu sócio, pois decidida ao aborto, trata-se uma decisão sua. Entretanto, desajeitada e desinteressada, Bonnin encontra no roteiro uma saída para que ele o descubra, inserindo em seu arco um ponto de conflito e revolta. Essa revolta vem acompanhada de uma crise de ciúmes com relação a um antigo amor de infância da protagonista, o que culmina em vias de fato e disputa masculina – resta à personagem levantar-se e ir embora, em evidência ao ridículo da situação. Tudo seria razoável, não fosse, logo em seguida, a diretora transformar Cécile em alguém que resolve se desculpar, humilhantemente, ao companheiro (diga-se, verbalmente violento), enfraquecendo sobremaneira e quase anulando seu pretenso e bem intencionado discurso feminista.
Inserir a personagem em situações e relações que tentam evidenciar seu feminismo e liberdade como mulher tampouco salvam o discurso que custa a se sustentar. Cécile não se importa, a título de exemplo, em pegar carona com caminhoneiros na beira da estrada e possui, majoritariamente, amizades masculinas, com quem bebe e se diverte de modo livre. É um tanto contraditório que, quando uma amiga da infância surge, o contexto seja quase de disputa, de desconforto – trata-se da única mulher além da própria protagonista e sua mãe.
É justamente em uma dessas amizades que ela vai refletir seu presente a partir da lembrança de um amor passado. Impressiona como não há química em qualquer dos relacionamentos que a protagonista mantém, passado ou presente. Os amigos de infância vão funcionar em alguma medida para ressaltar a oposição entre trabalho e lazer que a diretora busca trazer em evidência, colocando essa mulher bem sucedida e estressada pela carga e exigência laboral em uma pausa forçada para lidar com a saúde do pai, e que se vê, na terra natal, se divertindo como há muito não fazia. As sequências de interação e descontração entre os amigos é um dos poucos pontos altos do filme, dando leveza ao fardo que a protagonista carrega com seus dilemas e questões.
Partir un Jour dedica-se tanto, sem esforçar-se, realmente, a nada, pois realizado do modo mais desleixado possível. Por sua natureza, o musical carrega certa eletricidade, certo magnetismo em sua atmosfera que o longa de Amélia Bonnin passa muito longe de possuir – seus rastros, as pegadas que se imprimem após a experiência fílmica, no presente caso, apagam-se facilmente atrás de nós.


Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo e patrocínio. Agradecemos em especial a: Ana Carolina Ballan Sebe, Caio Pimenta, Eduardo Filho, Lucas Ferraroni, Maria Eliana Pilon, Renata Boldrini, Thiago Bocanera Monteiro, Tiago Maia e Wellington Almeida;
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