
[78º Festival de Cannes] Sentimental Value
Este texto faz parte da cobertura do 78ª Festival de Cinema de Cannes, que ocorre entre 13 e 24 de maio.
Pairam uma angústia e insegurança sufocantes nas coxias do palco de teatro em que a atriz Nora, personagem de Renate Reinsve, precisa subir a qualquer momento. A produção a pressiona, evitando vulnerabiliza-la ainda mais, apagando as luzes do palco para atrasar o início do espetáculo, enquanto ela enfrenta um ataque de pânico, e caminha, agitada, de um lado para outro: tem certeza absoluta de que esqueceu todas as suas falas, de que não conseguirá. Precisa de um impulso, precisa de um estímulo de adrenalina, e vai buscar no amante Jakob (Anders Danielsen Lie) por um beijo excitante ou um tapa na face. Obtém o segundo. Nora necessita sentir, e nesse caso, a dor é quem vai colocá-la no lugar.
Os minutos desesperadores que introduzem a protagonista de Sentimental Value, nova obra de Joachim Trier após A Pior Pessoa do Mundo e vencedora do Grand Prix do 78º Festival de Cannes, são capazes de fazer crer que, ali, o medo descontrolado causado pela ansiedade vai matar a arte que está prestes a acontecer. Somos enganados, ainda bem. Mas é com essa referência sentimental negativa que Trier nos conduz à compreensão de afetos familiares tão complexos que distantes e próximos concomitantemente, introduzindo a arte como modo de diálogo entre pessoas incapazes de se comunicar.
O núcleo familiar de Nora está vinculado à casa de sua mãe, cujo luto é um sofrimento muito recente. Esse espaço, um sobrado de um vermelho bordô destacado em meio a plantas e um vasto jardim muito vivo, conecta as gerações que precederam a família materna, e coloca, sob o mesmo teto, a afetuosa irmã Agnes (Inga Ibsdotter Lilleaas), o sobrinho pequeno, e o controverso pai Gustav (o furacão que é Stellan Skarsgård), um diretor de cinema imponente, dominador de espaços, que flerta como instinto natural. Gustav vai nutrir com Agnes uma proximidade carinhosa, ao passo que mantém um distanciamento desconfortável de Nora. Pai e filha no mesmo ambiente atraem um silêncio constrangedor, olhares para qualquer lado que não seja o outro, corpos desajeitados posicionados sobre um espaço que parece os incomodar pela aproximação forçada.
Quando Gustav revela ter escrito o roteiro para um novo filme e que gostaria que Nora fosse a protagonista, a recusa ao papel é imediata e irrefletida. Surge, então, Rachel Kemp (Elle Fanning), uma atriz estadunidense de fama que o assume, e que vai, de certo modo e com estranhamento, ocupar algumas lacunas dessa família em estilhaços. Joachim Trier trabalha com a metalinguagem para trazer o processo da realização fílmica como expressão maior de sentimentos e não ditos. Reforça, tão bela e melancolicamente, a força inesgotável e inquestionável do cinema como linguagem que, aqui, se sobrepõe a qualquer outra forma de comunicação.
Sentimental Value consegue transparecer para nós as dificuldades imensas de um relacionamento entre pai e filha, e ao mesmo tempo, o grande afeto que nutrem um pelo outro, de forma totalmente imagética, expressiva nas atuações colossais (lembrar de Stellan Skarsgard até arrepia) e nos detalhes que o diretor nos fornece, já que os personagens em si sequer conseguem estabelecer um diálogo, tamanha a dificuldade da relação. As ausências dirão muito mais do que qualquer discurso falado com explicitude – Trier se comunica com seu espectador com a mesma sutileza que seus personagens uns com os outros. Muito embora dramático, diferentemente de A Pior Pessoa do Mundo, o diretor evita se ater ao melodrama. Há uma naturalidade emotiva proveniente justamente do enredamento dos relacionamentos humanos, e Trier não necessita inserir recursos fílmicos que elevem a potência dos sentimentos e sensações.
A arte, aqui, especificamente o cinema, é extraída da dor. Controversamente, é da arte derivada do sofrimento que a cura surge. Sentimental Value é, de fato, um silencioso processo de regeneração, de perdão e uma carta de amor discreta – e por isso mesmo, ainda mais potente do que a dita em alto e bom som.


Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo e patrocínio. Agradecemos em especial a: Ana Carolina Ballan Sebe, Caio Pimenta, Eduardo Filho, Lucas Ferraroni, Maria Eliana Pilon, Renata Boldrini, Thiago Bocanera Monteiro, Tiago Maia e Wellington Almeida;
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