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[78º Festival de Cannes] Sound of Falling

Este texto faz parte da cobertura do 78ª Festival de Cinema de Cannes, que ocorre entre 13 e 24 de maio.


É difícil precisar se trata-se de uma memória confiável, e se aquele era, de fato, o primeiro velório que compareci. Outros podem ter ocorrido antes, mas foi este que ocupou um espaço muito importante em minhas recordações infantis. Mas é certo que me recordo bem de estar, com minha família, velando o corpo de uma tia de minha mãe, já idosa. Não me lembro de seu semblante, mas lembro que, juntamente com uma prima com idade próxima da minha, exploramos os caixões alheios e seus mortos, rindo curiosas, correndo de um lugar a outro, sem dar muita atenção à tristeza ao redor. É curioso como não tenho lembrança do semblante de minha parente, mas tenho viva a expressão de um falecido cuja identidade desconheço, e que estava ali, sendo velado no mesmo dia, hora e local. Muito tempo após a cerimônia, recordo de brincar com essa mesma prima que uma de nós era a tia falecida fantasmagórica e a outra precisava fugir. O temor pelo desconhecido que hoje, percebo, era um sentimento gerado pela brincadeira, ainda é muito claro nessa memória.

Em sendo a criança o ser humano mais distante da morte, considerando, por evidente, o processo natural do ciclo da vida, quiçá quando esse enfrentamento direto ocorre, desperta e engatilha com ele alguns medos que, silenciosamente, vão permear os pensamentos infantis, mesmo que não haja, ali, nenhuma elaboração ou pouca compreensão a respeito. O alemão Sound of Falling, dirigido por Mascha Schilinski, primeiro longa da Competição do 78º Festival de Cannes a ser exibido este ano, faz da relação entre a morte e a infância uma sombra na forma de recordações e traumas que, sensorialmente, vão conectar gerações e personalidades diversas de quatro mulheres. 

Para além do elo geracional, a conexão entre tais figuras femininas se dá, outrossim, em razão do lugar. Elas habitam, em tempos diferentes, uma fazenda que pertence à família, cujos espaços e os acontecimentos passados que eles guardam vão atrair, quase de modo sobrenatural, cada uma delas. Se, do ponto de vista psicológico e psiquiátrico, os traumas de uma mãe podem ser transmitidos para seus filhos, o recorte feminino trazido por Schilinski vai trabalhar com uma premissa semelhante para frisar o vínculo entre elas, a morte, a família e o espaço como uma maldição, um ciclo difícil de quebrar. 

Com idades imprecisas, mas que se limitam à adolescência, Mascha Schilinski vai, inicialmente, introduzir o olhar voyeurista de Alma, a primeira dessas meninas que nos é apresentada, sobre os acontecimentos que passam por sua observação infantil num período que presumimos estar situado na 2ª Guerra Mundial. A câmera de Schilinski torna-se subjetiva sob a perspectiva da garota com seus aproximados seis anos, para nos permitir, junto dela, passear e conhecer a fazenda da família, principalmente, seus ambientes internos, para facilitar nossa localização e fixar, no ambiente, nosso olhar enviesado com seus abalos e como eles impactam, inconscientemente, seus medos.

Seu nome não é despropositado, e vai funcionar, de fato, para transmitir o efeito de sua permanência em cada canto daquela casa. Por entre portas e janelas, Alma observa o irmão e o tio, pessoas com deficiência, pela falta de um dos membros inferiores por ocasião de “acidente de trabalho”, sendo cuidados pelas empregadas da casa, silenciosamente absorvendo os gemidos de dor. Observa, ainda, as fotografias da família, num tempo em que era costume registrar os mortos em seus leitos ou macabramente posicionados como se vivos estivessem, para a finalidade de tê-los e guardá-los na memória. Lança e faz permanecer sua curiosidade na foto de uma menina muito semelhante a ela, usando um vestido preto de luto idêntico (se não o mesmo) ao seu, sentada num banco com o pescoço pendendo para o lado, ao lado de duas bonecas. Ela fixa seu olhar sobre tal fotografia obsessivamente, e a inexpressividade pertinente da atriz-mirim colabora para que paire uma atmosfera tanto melancólica quanto sinistra, revelando gradativamente como aquilo tudo que ela observa vai transformar-se, em algum momento, num medo mais elaborado, ao, por exemplo, passar a noite em claro para não morrer dormindo.

Seguem-se a geração de Alma histórias mais que vão, cada qual, lidar com a morte e algum elemento-gatilho que a traz à tona. A água, a fotografia, as enguias, até que se alcance a própria figura masculina opressora como consolidadora dessa maldição, em gerações futuras. Partilhando com Alma o mesmo tempo de história, a jovem Erika guarda obsessão outra e que se relaciona, semelhantemente, à finitude da vida: ela observa com semelhante voyeurismo os parentes mutilados, sentindo-se atraída por eles, desenhando seus corpos, tocando-os quando ninguém vê. 

Em sendo Sound of Falling construído como lembrança, a diretora imprime elementos sensoriais que reforçam a ideia, primordialmente, através da visão e do som (o título, evidentemente, já nos dá pistas a respeito da importância do som ao longa). Quando trata-se da memória, talvez mais confiável que a visão, fácil e inconscientemente modulada por nós, não poucas vezes, de forma auto protetiva, seja o olfato e a audição. Nesse sentido e não à toa, Schilinski vai atribuir à imagem um blur em alguns momentos específicos, ao passo que confere ao som um efeito de suspensão do tempo para elaboração e criação da lembrança – ela silencia tudo ao redor para destacar a sonoridade dos acontecimentos. As quedas que referencia são diversas, seja em sentido literal, como um corpo caindo do alto de um celeiro, ou a mãe de Alma que cai ao chão e não consegue mais se levantar, como em seu sentido figurativo, em representação ao estado de espírito dos personagens. Há, ainda, quedas iminentes capazes de gerar ansiedade e expectativa no espectador, reforçando a sensação generalizada de mau presságio que o longa carrega.

Mascha Schilinski faz de Sound of Falling um incômodo exercício dos estágios da criação de lembranças que vão, silenciosamente, em acompanhamento aos estágios da vida, sendo arrastadas, da infância à vida adulta, para tornar-nos as pessoas que somos, seres carregados de traumas inexplicados, medos desconhecidos, cujas origens ela revela a partir do recorte intergeracional dessas quatro mulheres. O maior medo de todos, por evidente, é o da morte, e a expectativa de sua chegada mina, gradativamente, nesse contexto de prenúncio e ausência de relaxamento mesmo nos momentos de descontração, o gosto e a razão da vida.


Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo e patrocínio. Agradecemos em especial a: Ana Carolina Ballan Sebe, Caio Pimenta, Eduardo Filho, Lucas Ferraroni, Maria Eliana Pilon, Renata Boldrini, Thiago Bocanera Monteiro, Tiago Maia e Wellington Almeida;

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Advogada, crítica de cinema, editora e cofundadora do Coletivo Crítico. Membra do Júri da Latin American Critics Awards for European films.

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