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[78º Festival de Cannes] The Black Snake

Este texto faz parte da cobertura do 78ª Festival de Cinema de Cannes, que ocorre entre 13 e 24 de maio.


Parte da Acid, uma mostra paralela do Festival de Cannes em que os filmes são selecionados por cineastas – prometendo assim uma programação mais ousada -, La Couleuvre Noire, ou The Black Snake, é uma produção entre França, Colômbia e Brasil que adentra o deserto colombiano de Tatacoa. Pelo realismo fantástico, Aurélien Vernhes-Lermusiaux conta tanto a história particular de Ciro (Alexis Lozano Tafur) quanto do espaço geográfico que o cerca, explorando o místico que vem da terra e da ancestralidade. O homem retorna para seu local de origem depois de uma década afastado, assim que recebe a notícia do estado de saúde bastante prejudicado de sua mãe. Com sua chegada, Ciro é confrontado por tudo que deixou para trás e é levado a encarar de frente a herança espiritual que carrega.

Embora a história de The Black Snake seja bem batida, explorando o retorno para casa, a morte de um dos genitores e a jornada que faz um personagem principal enfrentar seu passado e tudo do que fugiu ao se mudar, transformando-se nesse processo, há algo interessante na direção de fotografia de Sylvain Verdet. Na verdade, existe muito mais esforço do longa na composição das imagens do que em desenvolver a história. A trajetória de Ciro vem muito mais por como o deserto é retratado ao seu redor, por vezes com a secura assemelhando-se fascinantemente a uma pele enrugada, e em outros momentos apequenando os personagens pela grandiosidade árida, do que por sua forma de reagir aos acontecimentos, pelos diálogos ou desenrolar das ações. 

O visual das cenas é capaz de captar e transmitir a ancestralidade impregnada na terra, enquanto o filme parece levar quase todos os seus 80 e poucos minutos para dizer algo mais concreto sobre a lenda da cobra preta gigante que a mãe de Ciro começa a narrar nos primeiros momentos de The Black Snake. Enquanto o homem vê sua mãe falecer e torna-se portador da herança sobrenatural familiar, o pequeno vilarejo ao seu redor, incluindo seu pai, mantém certa distância e desconfiança. Ciro fica isolado e, a partir dessa relação, o filme rumina sobre como o protagonista fugiu daquelas terras secas, não em busca de progresso urbano ou dinheiro, mas por medo de sua conexão ancestral e espiritual com o lugar, com medo da lenda da cobra preta contada pela mãe.

Embora o deserto de Tatacoa seja apresentado nas cenas já com certa mística desde o começo, The Black Snake fica mais no flerte, até finalmente abraçar seu lado fantástico. Ao lidar com a jornada individual de Ciro e suas questões internas, o filme sai um pouco prejudicado, pois é nesse realismo seco que estão suas maiores fraquezas, muito pelo roteiro não desenvolver suas ideias o suficiente, apenas as apresenta e as deixa no lugar mais simplista e raso e, por serem já vastamente conhecidas por um público com alguma intimidade com o cinema, soam mal-acabadas e genéricas. 

Recentemente foi Juliana Rojas que contou uma história parecida em Cidade; Campo, e, como nesse exemplo, talvez sejam as mulheres protagonistas que mais ilustrem narrativas assim. Curiosamente, Ciro é um homem, mas tanto a primeira ancestral que inicia uma conexão com as cobras, quanto sua mãe e sua filha, são mulheres. Ele é um ponto fora da curva, incapaz de lidar com a herança que carrega, rapidamente a passando para a próxima pessoa com o mesmo direito. Essa contradição ou a relação do gênero com a sina espiritual não é trabalhada propriamente no roteiro do filme, a obra mais se preocupa com suas composições visuais e como elas vão retratar aquele espaço, a pequenez de Ciro no deserto ou as escamas brilhantes e mágicas da cobra preta gigante. Eventualmente esse esforço preenche algumas lacunas, mas a balança final é desequilibrada.

Algo que acompanha o belo trabalho de fotografia é o som, sempre ressaltando a aridez, com os passos secos na poeira em destaque. Por ser uma obra silenciosa, a composição da mística do espaço também depende muito dessas ações técnicas, que preenchem as cenas e constroem mais sentido do que o texto. Esses elementos apontam que The Black Snake é muito mais sensorial, porém, para observar o deserto e o ouvir, ver a lenda se tornar realidade e compreender o receio humano perante a grandeza do inexplicável, pode-se precisar de um roteiro que acompanhe essa profundidade e ajude a pessoa espectadora a mergulhar de cabeça nela, mas parece que este fica mais contra do que a favor. 

Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo e patrocínio. Agradecemos em especial a: Ana Carolina Ballan Sebe, Caio Pimenta, Eduardo Filho, Lucas Ferraroni, Maria Eliana Pilon, Renata Boldrini, Thiago Bocanera Monteiro, Tiago Maia e Wellington Almeida;

e

Crítica de Cinema e formada em Rádio e TV. Apaixonada pela sétima arte desde sempre, trabalhando com marketing para pagar as contas e assistindo a filmes para viver.

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