
A Grande Viagem da Sua Vida (2025)
O cinema de Kogonada nos prende em uma expressão minimalista de sentimentos. Não há grandes arroubos, mas nem por isso é frio. Os diálogos marcam a interação entre as personagens sem que soem expositivos. Em Columbus (2017) a espacialidade dos elementos arquitetônicos servem de pano de fundo para a elaboração do vínculo humano. Esse mesmo vínculo se expande com contexto sci-fi em After Yang (2021). Nele, a pequena Mika, uma menina chinesa, é adotada por um pai branco e uma mãe negra que adquirem um androide chinês chamado Yang para que ela tenha referências da própria cultura origem. Até que o robô, virtualmente irmão da criança, tem um defeito. São cenários complexos e relações humanas profundas que atraem o cineasta.
Não seria diferente em A Grande Viagem da Sua Vida (A Big Bold Beautiful Journey, 2025), dessa vez com roteiro de Seth Reiss. O protagonista, David (Colin Farrell), precisou alugar um carro e viu um anúncio impresso. Ligou para o número e, ao chegar ao lugar indicado, a direção de arte, lúdica, brinca com as expectativas. Uma placa com uma seta indica o lado oposto com o dizer “return” (volte), como se o caminho oposto ainda pudesse ser trilhado em caso de dúvida, algo que informa sobre a premissa do próprio filme. Mas como o automóvel ainda era necessário, não sem alguma dificuldade, ele consegue acessar um galpão e o plano aberto dá conta de registrar o quão ridiculamente grande o espaço é. Lá o esperam dois atendentes (Phoebe Waller-Bridge e Kevin Kline) com um carro diretamente de 1994.
David, então, vai até essa festa de casamento onde conhece Sarah (Margot Robbie) e o flerte entre os dois é imediato, apesar do contraste, que já é expresso no figurino de Arjun Bhasin, David prefere roupas mais estruturadas e em cores frias, e veste um paletó azul marinho. Sarah tende a usar peças fluidas e em cores quentes e usa um conjunto de calça e camisa estilo pijama com listras vermelhas e laranjas. O rito da festa de casamento é apresentado, como em Amores Materialistas, como um espaço de inadequação para aqueles que chegam sós e ao mesmo tempo com potencial para que novas relações floresçam. Esse não é o único aspecto em comum entre ambos os filmes, mas voltarei a isso mais adiante. Sarah provoca a pergunta “você acredita em casamento?” como se “casamento” fosse um mito e não um rito. Ele está lá, mas há algo por trás em que deve se ter uma crença especial. E é nesse algo que David acredita. Sarah? Não necessariamente. Por via das dúvidas, ela o pede em casamento. Mas antes que a noite acabe, já se separaram em suas diferenças.
E ele, claro, se arrepende da falta de coragem. E se eu tivesse conversado diferente? E se eu tivesse dançado? Nos relacionamentos, os que dão certo e os que não dão, não é sempre assim: uma coleção de “e ses”? (Kogonada segue conversando com Celine Song, dessa vez com Vidas Passadas). Mas o diretor, novamente explorando a temática da interação entre humanos e tecnologia como pano de fundo para sentimentos mais profundos, usa o GPS do carro alugado como um guia que convida David: você aceita embarcar na grande viagem da sua vida?
A primeira parada é um reencontro com Sarah e, muito doidinha, ela não só pede estranhos em casamento e vai a eventos formais de pijama, mas, como cool girl escrita e dirigida por homens, ela deixa bem claro que sua vida é desregrada e ela come fast food todos os dias. O filme acende o sinal amarelo e parece indicar que vai por caminhos óbvios já trilhados em outros romances cinematográficos. A garota linda, artsy e descolada que se comporta como uma manic pixie dream girl abrindo os rumos para uma jornada de autoconhecimento do herói solitário e fechado em si. Mas ela mesma se revela traumatizada por relacionamentos anteriores e enquanto ele esconde na sua esperança a sua faceta egoísta. De alguma maneira a narrativa brinca com essas expectativas, nos conduzindo por certos lugares comuns para reconfigurá-las.
E isso é feito, inclusive, usando o GPS como literal instrumento que guia a narrativa. Se em Amores Materialistas Celine Song ainda propõe, talvez de modo ingênuo, que o matchmaking em nossos tempos tão virtuais possa ser feito de forma analógica, afinal, nada mais seleto para clientes refinados do que apresentar algo como sendo valioso justamente por ser feito à mão, Kogonada se volta para nossa relação com a interface gráfica como artifício da descoberta de nós mesmos. A voz que guia é a voz que une. A voz que une é a voz que provoca caminhos, memórias, lágrimas e confrontos. Porque, no fim das contas, não é um algoritmo, por mais fofinho que seja, que vai ditar o relacionamento, é a capacidade afetiva de construir a partir de cada escolha já feita no passado, no presente e no futuro.
E assim David e Sarah atravessam repetidas portas que os transportam para momentos de suas vidas que marcam quem eles são hoje, os impedindo de levar suas escolhas românticas adiante. A narrativa se mostra mais interessada em David do que em Sarah. O desequilíbrio se mostra da primeira escolha: um museu (um espaço impessoal, ainda que com um significado pessoal) em comparação com um mergulho longo na escola e na vivência adolescente dele. A profundidade é diferente, com resultados diferenciados.
Nesse sentido, é curioso como, novamente repetindo o padrão de Amores Materialistas, seja Sarah quem afirme reiteradamente que é uma pessoa horrível. Ela, que perdeu a mãe tão jovem, e precisa lidar com o sentimento de culpa. Já David precisa se reencontrar nos seus próprios medos. Quando ele pega a chave do carro, lhe dizem que atuar pode levar à verdade. Mas o verbo act em inglês também tem o sentido de agir. Como um RPG, um role play, eles precisam reviver as memórias à lá Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, mas não basta revisitá-las, é necessário tomar decisões sobre elas.
É nessa hora, num lindo reencontro de Sarah com sua mãe, que o filme flerta perigosamente com a autoajuda. Tenho certeza que frases descontextualizadas dele estamparão perfis bem intencionados de redes sociais. Ao mesmo tempo, é de uma sinceridade que desarma qualquer perspectiva mais cínica. É preciso escolher os pequenos detalhes e é aí que entra a atuação/ação para chegar à verdade. Um serviço de encontrar almas gêmeas, analógico ou digital, é uma impossibilidade por definição. O que é possível é escolher a imperfeição e agir. Amar é escolher. Sarah e David se encontram na verdade um do outro e aprendem a se ver. A expressão é marcada no próprio figurino: ao final ele com sua camisa polo vermelha e ela com seu quimono azul.
Um filme sensível, que propõe jornadas ousadas para encontrar as respostas que deveriam ser as mais simples, A Grande Viagem da Sua Vida é a incursão de Kogonada pelo romance fantástico com sua sensibilidade minimalista. Usando da interface tecnológica como desculpa para mergulhar na memória de seus protagonistas, o filme arranca lágrimas fáceis com emoções complexas em busca da resposta da pergunta sempre difícil: vale o risco? Sim.


