
Ainda não é Amanhã (2025)
É impossível assistir a um filme como O Acontecimento ou Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre sem ser tomada pela angústia quando vemos as protagonistas, tão jovens, tendo que lidar com os labirintos sofridos da falta de acesso a direitos reprodutivos. O mesmo quando, na vida real, acompanhamos as consequências nefastas da revogação do Roe contra Wade, decisão judicial que permitia as leis estaduais garantirem acesso ao aborto legal nos Estados Unidos. Com sua revogação em 2021, diversos estados baniram essa garantia, mesmo em casos de risco para a saúde da gestante (condição que garante, teoricamente, o acesso ao aborto no Brasil), e a mortalidade de mulheres grávidas só vem aumentando.
O fato é que em diferentes épocas e lugares, pessoas capazes de gestar tiveram seus corpos controlados e direitos reprodutivos e acesso a aborto legal foram negados de diferentes maneiras. Por isso, quando assisto a esses filmes de outros países, com toda a agonia e angústia despertada, eu sempre termino pensando “e aqui no Brasil, então, que a gente nunca sequer teve aborto legalizado?”. O horror, no final das contas, é cotidiano e é aqui.
Ainda não é Amanhã, escrito e dirigido por Milena Times, conta a história de Janaína (Mayara Santos), uma jovem da periferia de Recife que é a primeira de sua família a ingressar em uma faculdade. Cursa Direito com bolsa, e é uma aluna dedicada, com ótimos resultados, que se torna monitora de uma de suas professoras. Ela vive com a mãe (Clau Barros) e com a avó (Cláudia Conceição), nessa genealogia de mulheres lutando por futuro, para suas proles, em uma casa facilmente reconhecível, pela construção dos detalhes como uma arquitetura do afeto e da memória de tantos cantos do Brasil.
Janaína representa uma esperança de mudança e de um futuro diferente, de uma perspectiva de mudança geracional possibilitada pelo acesso à educação. Ela, que fazia uso de métodos contraceptivos com seu namorado, só não contava que, por algum motivo, como é até mesmo estatisticamente factível, aconteceu alguma falha e ela engravidou.
Logo ela percebe que, por mais que ele diga que estão juntos nessa, não é agora, aos 18 anos, no primeiro ano de faculdade, que gostaria de ser mãe. É interessante que o filme ainda precise dessa personagem de trajetória exemplar, que poderia ser “maculada” por algum tipo de contratempo não planejado, para de certa forma justificar suas escolhas pessoais, ou colocar elas como um contrapeso em oposição a tudo que está em jogo no outro lado da balança.
Inicia-se uma peregrinação em busca de soluções para o que se torna um problema: a falta de uma forma legalizada e segura para abortar exacerba o sentimento de solidão de Janaína, que a diretora reforça em cenas tanto da protagonista em solitária em reflexão quanto do próprio ambiente sufocantemente a comprimindo, por meio de um jogo de lentes.
É nesse aparente labirinto, que deveria ser pessoal, mas acaba sendo também legal, que Janaína descobre a acolhida. A busca por sites escusos e comprimidos adquiridos de forma clandestina são colocados em paralelo com os debates sobre ética e legalidade de suas próprias aulas, em uma clara tentativa de criar um contraponto entre o discurso e a discussão acadêmicos e a realidade que está sendo vivida silenciosamente pela aluna. E se por um lado é violenta a incerteza e a necessidade de tatear só um caminho seu, por outro descobre que nunca foi só seu: há quem já o trilhou, há quem está lá para abraçá-la e ajudá-la no processo, em uma multiplicidade de compartilhamentos.
O filme opera com um discurso bastante bastante simples e direto sobre causas e efeitos, retratando sua protagonista em sua jornada de escolhas e as consequências, especialmente as respostas afetivas das mulheres ao seu redor. Ainda não é Amanhã tem a particularidade das questões brasileiras a respeito do acesso ao aborto legal, de trazer para nossa realidade discussões que infelizmente nunca param de ser relevantes e contemporâneas, mas pontuando-as com o afeto dos laços construídos por sua heroína.




2 Comentários
Rafael Oliveira
Que texto exccelente, Isabel! E gostei especialmente da lembrança de Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre, um filme que me marcou bastante.
Isabel Wittmann
Obrigada, Rafael!