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Love Lies Bleeding (2024)

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A estreia no cinema da cineasta britânica Rose Glass no cinema se deu com o horror Saint Maud (sobre o qual temos um podcast), um estudo de personagem por meio de body horror. Seu novo filme Love Lies Bleeding, recentemente estrou nos cinemas. É comum que pessoas que trabalhem não só com horror, mas com cinema de gênero como um todo (sci-fi também, por exemplo), uma vez que adentrem nesse universo, se vejam presas lá, não saindo para a exploração de outros gêneros cinematográficos. E não que haja algo de errado em gostar e se ater especificamente a um gênero, mas parece que muitas vezes há uma dificuldade de sair mesmo quando esse é o desejo. Por isso, fiquei surpresa e satisfeita quando o filme começou, imaginando que a diretora iria por outro caminho. 

Na trama, que se passa no final dos anos 1980, Kristen Stewart interpreta Lou, uma jovem que trabalha cuidando de uma academia em uma pequena cidade de beira de estrada. Posteriormente descobre-se que o estabelecimento é de propriedade de seu pai, Lou Sr, vivido por Ed Harris, com uma caracterização incrível que inclui cabelos longos e uma careca para seu personagem, bem como um rosto marcado pela passagem do tempo constantemente realçado. Lou e Lou Sr. têm pouco contato: a protagonista parece querer se distanciar dos negócios de seu pai, que gerencia um império local de crime e usa um centro de treino de tiro ao alvo como fachada para suas atividades.

Sua rotina é perturbada pela chegada de Jackie (Katy O’Brian), uma fisiculturista de passagem pela cidade, que quer arrumar um trabalho para depois ir a Las Vegas para uma competição de bodybuilding. Glass estabelece uma relação de atração e desconfiança entre as personagens. Jackie rapidamente se instala na casa de Lou, mas essa não tem certeza se o envolvimento das duas é sincero ou devido ao fato da segunda precisar de um lugar para se hospedar. O filme parece tatear o estereótipo da personagem bissexual como pouco digna de confiança, como se seus afetos pudessem ser moldados por interesses específicos e pudessem mudar conforme as suas necessidades. 

Mas de fato a dinâmica de gênero e sexualidade que se estabelece entre ambas é bastante perspicaz. O fato de Lou ser “Junior” em relação ao nome de seu pai, mesmo sendo mulher, já mostra que a proposta é subverter as expectativas de gênero. O nome de Jackie apresenta o mesmo tipo de ambiguidade, podendo ser, da mesma forma, entendido tanto como feminino como quanto masculino.

Além disso, em uma lógica de relacionamento sáfico femme-butch (em que a primeira performa uma feminilidade tradicional ou exacerbada e a segunda uma feminilidade que, dentro das convenções, seria pouco convencional ou considerada masculinizada) Lou e Jackie se situam de maneiras opostas ao que se espera de suas próprias corporalidades. Com corpo magro e esguio, Lou é uma butch durona, enquanto o trapézio avantajado e os músculos definidos de Jackie escondem uma femme delicada. A escalação da atriz para o papel é um trabalho preciso: especialmente em Hollywood, com seus corpos femininos limitados a padrões tão específicos, encontrar alguém com experiência em bodybuilding e ao mesmo tempo um rosto tão suave e meigo não deve ter sido tarefa fácil. Jackie não é um mulher forte como uma Sarah Connor, naquele padrão de força que a indústria aceita, em que os músculos são perceptíveis, mas a forma do corpo permanece esguia. Seu corpo é de uma verdadeira Hulk.

Quando ela se move ou treina suas poses para a competição mostra um corpo ampliado pela combinação de exercícios e esteroides (esses, oferecidos por Lou como um instrumento de flerte), que, com seus movimentos suaves, criam uma combinação contrastante, aliada a closes que a cineasta realiza em seus rosto com intuito de frisar a delicadeza de seus traços. Glass busca realçar a força de Jackie pelos planos detalhes em seus músculos e acentuar o desconforto por meio do trabalho de som, que amplifica o ruído das fibras se rasgando, tonificando e crescendo.

Ainda que esses efeitos sejam exagerados, até esse momento eu não estava assistindo ao filma na chave de cinema fantástico. Trata-se de um neo noir com duas femme fatales descontruídas. A comparação com Thelma e Louise (sobre o qual também temos um podcast a respeito) vem fácil, uma vez que as ações das duas escalonam, envolvendo-as cada vez mais em crimes. O próprio figurino reflete aqueles das personagens do filme de Ridley Scott e há, até mesmo, uma sequência em que carros de polícia correm pelo deserto em direção a um desfiladeiro.

A principal diferença é que, ao contrário do filme de 1991, aqui há espaço para estabelecer o romance, para além da amizade. (O que é curioso se pensarmos a presença do filme em listas no Letterboxd como Shoulda been Gayer). Assim como o recente Rivais, a obra constrói uma sexualidade rica para as personagens e Glass compõe cenas de sexo esteticamente aprazíveis, com jogos de luzes amarelas e vermelhas, trilha de sintetizadores que remete ao período retratado, e que não omite as práticas eróticas das protagonistas. A sexualidade não se esconde, faz parte da identidade de ambas, da maneira como portam seus corpos e da forma como são apresentadas e desenvolvidas, funcionando tridimensionalmente. E tudo isso em uma narrativa que, apesar dos elementos noir e de romance, também não se furta de pontuar os acontecimentos com um humor pelo absurdo. 

O relacionamento, não sem seus conflitos, é, ainda assim, um contraste com o que vive Beth (Jena Malone), irmã de Lou, presa em uma relação violenta com marido JJ (Dave Franco). Ele tem expectativas muito limitadas sobre feminilidade e o que entende por ser o papel de uma mulher na sociedade, ao mesmo tempo em que não se furta de de cometer violências cada vez mais extremas contra ela. Jackie não se controla e tenta resolve a situação ao seu modo. Mas mesmo Beth não quer ser ajudada, com a desculpa que Lou não sabe o que é amar. O adequado subtítulo brasileiro “O amor sangra” dialoga com essa noção de que o sentimento pode ser confuso, repentino, dolorido e doloroso, mas não violento: a ameaça física se disfarça de amor e envenena a noção de relacionamento, criando uma realidade em que fazer sofrer é ser intenso. Beth é exemplar nesse sentido: ferida, apavorada, ela ainda sente que seu casamento seria apenas intenso e não enxerga em JJ um algoz ou torturador. Amar seria sofrer e permanecer, em um ciclo sem fim de dor e arrependimento.

A diretora cria de maneira habilidosa a atmosfera noir do filme, mesclando romance, dinâmicas familiares complexas, sentimentos conflitantes e crime, esse último sem castigo, mas não sem inúmeros percalços. Lou e Jackie podem revidar as violências que testemunham, lidar com as consequências de suas ações, explorarem mutuamente seus corpos, pegarem a estrada, discutirem o seu relacionamento e se entenderem juntas. E Thelma e Louise, nessa releitura, finalmente podem ser sáficas. 

Por isso, de certa forma, o inesperado e destoante elemento fantástico apresentado nos últimos minutos de filme quebram consideravelmente, de maneira anticlimática, toda a imersão que foi construída até então. Um desfecho destoante não é o suficiente para fazer desmoronar uma bela bela construção de atmosfera em uma narrativa sólida, mas o súbito foco no body horror como um elemento de choque atua como uma distração. É como se Glass, de última hora, decidisse conectar esse filme com o anterior, virando uma chave e inserindo-o em outro gênero. O filme é, até o final, sexy, tenso, divertido e absurdo. O repentino extremo de acontecimento não se encaixa nos demais elementos, apesar da violência anteriormente apresentada, mas ainda permanece a sensação de que tudo que antecedeu funciona sobremaneira e esse breve desconforto não é o suficiente para arruinar a experiência. Love Lies Bleeding parece ser um filhote interessante de uma mente que fervilha ideias. Se o acerto não é integral, pelo menos o resultado é suficientemente único. 

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Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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