
Alguns comentários sobre A Hora do Mal e o camp vilanizado
Publicado originalmente em 20/08 na newsletter para assinantes do financiamento coletivo do Feito por Elas. Para contribuir com o projeto, assine aqui.
As últimas semanas foram de muito alarde em cima de filmes de horror recentes e me vi como a pessoa do contra, que (infelizmente) não conseguiu comprar totalmente as propostas dos filmes apontados. Sim, eu detesto não gostar de um filme. Cinema, para mim, deveria ser algo prazeroso e não vejo vantagem em manter uma posição de oposição em relação às obras lançadas. Mas nesse caso, embora elas tenham, sim, seus méritos, não consigo deixar de apontar meus incômodos. (As discussões a seguir terão spoilers moderados).
Finalmente fui assistir A Hora do Mal (Weapons) de Zach Cregger. Nele, Justine (Julia Garner) uma professora do 3º ano, chega para dar sua aula, apenas para descobrir que, de toda sua turma de 18 crianças, apenas uma compareceu. As outras 17 desapareceram misteriosamente naquela noite. Às 2:17 de manhã (horário registrado por câmeras de segurança e alarmes, algo que só é possível saber numa sociedade de hipervigilância), elas abriram as portas de suas casas e saíram correndo. Uma premissa muito interessante: capturou minha atenção de imediato.
E o filme começa a narrar os acontecimentos sob o ponto de vista da própria professora, de maneira que, escancarando a passagem do tempo, temos noção do trauma sentido pela comunidade mas também da paranoia que se instala: por que só essas crianças? Por que só as alunas dela? O que ela supostamente teria feito? Os pais e responsáveis imediatamente se viram em busca de uma ameaça externa, representada, nesse caso, por essa mulher. Família, subúrbio, escola, polícia: todos são instituições que constroem e mantém os espaços liminares da paranoia.
Meu primeiro problema é com a própria estrutura da narrativa. Aos 30 minutos de filme, o ponto de vista de Justine é abandonado e vemos os acontecimentos serem narrados de novo pelo ponto de vista do policial. Mais 20 minutos. De um pai. Do diretor. De uma criança. Até mesmo do jovem viciado em drogas que é colocado no filme apenas para efeito cômico. A repetição chega ao ponto da exaustão em um filme com 2 horas de duração que se repete cansativa e desnecessariamente. É de um didatismo enfadonho, porque pouco desses pontos de vista realmente acrescentam algo interessante que não seria possível enquadrar pelo olhar da protagonista.
O jogo de imagens é todo muito bonito. As cenas das crianças correndo para a noite, por exemplo, são, sem dúvida, assombrosas. Em outra sequência, Justine têm um pesadelo no ambiente escolar e a câmera como que flutua atrás dela, filmando suas costas num travelling vigilante que a faz virar para trás, com a impressão de estar sendo observada. São pequenos detalhes elegantes que dão uma sensação de tristeza com o resultado desconjuntado do todo.
E afinal a própria noção de paranoia, de busca por uma culpada externa pela supressão das crianças, apontada como uma espécie de vilã em relação à personagem principal, se mostra justificada. Archer (Josh Brolin), um pai de criança desaparecida que se apresenta como uma figura de uma masculinidade tradicional, antagônica e virulenta, acaba se tornando um dos heróis. Seu único erro foi apontar a culpada errada. Em oposição a isso, temos personagens LGBTs sendo mortos violentamente diante das câmeras de uma forma que não vemos acontecer com mais ninguém (até o desfecho). No cinema tudo são escolhas. E aí daqui pra frente entramos no campo do spoiler e da especulação.
Bom, afinal de contas o filme revela que todas as criancinhas foram atraídas por uma bruxa. Sim, uma bruxa, esse símbolo ancestral de corrupção feminina, que pode ser ressignificado como uma imagem de conhecimento e poder, mas nesse caso é só uma senhora envelhecida e doente que precisa de corpos jovens para, por meio de feitiços não explicados, restituir seu antigo vigor. A bruxa, Gladys (Amy Madigan) é, afinal, uma tia distante e desconhecida de Alex (Cary Christopher), a única criança que não desapareceu. Ela controlou os pais do menino e tomou conta da casa para si.
Sua aparência camp, com sobrancelhas desenhadas de maneira ultra-arqueadas, a maquiagem vistosa, suas roupas excessivamente coloridas e acessórios maximalistas lhe conferem uma estética… drag (que inclusive vem fazendo sucesso em memes nas redes sociais). Quando chega na escola para uma reunião com o diretor, seu visual rende olhares de julgamento e reprovação por parte da secretária. Isso em uma época em que drag queens estão sendo banidas de programações infantis e escolares nos Estados Unidos por puro pânico moral. Escolhas. Pois bem.

Eu tinha visto essa postagem no bluesky da crítica de cinema (e mulher trans, acho que nesse caso convém dizer) Willow Maclay, em que ela diz “Alguém percebeu que Gladys em A Hora do Mal está basicamente imitando Holly Woodlawn? *Provavelmente* não é intencional, mas isso nos dá dois bichos-papões levemente codificados como trans nos últimos anos. O outro sendo minha garota Longlegs”. Na sequência o crítico (também trans, diga-se de passagem) Caden Mark Gardner respondeu “Cada quadro me fez pensar na [drag queen] Jinkx Monsoon, que definitivamente tem incorporado Holly nos últimos anos”.
[Pausa para recomendar o livro Corpses, Fools and Monsters: The History and Future of Transness in Cinema, escrito por Willow e Caden Mark]


Holly Woodlawn era uma atriz transgênero portoriquenha que trabalhou com Andy Warhol. Confesso que não conheço seu trabalho e particularmente, sem conhecê-la em movimento, por fotos não vejo essa semelhança. Mas imagino que, para evocar um reconhecimento imediato, deve haver certos trejeitos, para além da emulação da aparência física, que são acionados. Também não vou dizer que concordo necessariamente com essa leitura, já que a personagem, a princípio, é apresentada como uma mulher cisgênero. Apesar disso, a conformação de uma ameaça externa à comunidade mostrada como essa figura camp, independente de cis ou transgeneridade, ainda assim é inegável. Escolhas.
E o uso do termo bicho papão por parte de Willow é provocativo, justamente porque o filme se apresenta como um drama muito real e se dissolve nas projeções de medos infantis, uma vez que o último ponto de vista retratado é o de Alex. Os pais controlados, a tia má que se revela uma bruxa, todo tipo de sortilégio, o bullying que deixa de existir com os colegas abduzidos por essa mulher. A Hora do Mal se mostra como um sólido suspense bem filmado e realizado sobre o pânico que envolve criar crianças nos subúrbios estadunidenses e o medo de perdê-las para a violência urbana apenas para se transformar no pavor da bruxa camp. E para além de justificar discursos conservadores, o filme ainda tropeça na sua estrutura repetitiva e toda a tensão se dissolve num horror que se perde na visão infantil. Uma pena.


