
Andor
Publicado originalmente em 18/09 na newsletter para assinantes do financiamento coletivo do Feito por Elas. Para contribuir com o projeto, assine aqui.
A tirania exige esforço constante. Ela se quebra, ela vaza. A autoridade é frágil. A opressão é a máscara do medo.
Definitivamente não sou do time das pessoas que cultivam apreço especial pela série Guerra nas Estrelas. Em diferentes épocas da minha vida tentei engajar em primeiros contatos e revisões que sempre me deixaram com a sensação de que é um universo com muito mais potencial do que resultado alcançado. Até gostava de Caravana da Coragem (1984) quando era criança, como gostava de basicamente de qualquer fantasia que envolvesse marionetes, bonecos e animatrônicos. Mas ver a trilogia original não afetou minha infância como outros filmes de fantasia e aventura da época, e o hype criado pela chegada da segunda trilogia em 1999 foi procedida de uma enorme decepção, até para quem não tinha muitas expectativas, como eu.
Acho que quase todo mundo que estava lá lembra como o Episódio 1 foi recebido como um balde de água fria. E apesar disso lembro de ter gostado de ver o Episódio 3 no cinema. E de ter esperança que a terceira franquia pudesse fazer algo interessante (tenho até uma camiseta da Rey), não quisesse agradar tanto os fãs.
Quando Rogue One: Uma História Star Wars (2016), dirigido por Gareth Edwards, estreou muito se comentou que esse sim era um bom filme. O cineasta vinha de dois filmes anteriores razoavelmente bem comentados, Monstros (2010) e Godzilla (2014) que exploravam a escala dos desastres dando suas dimensões humanas. Na mitologias de Star Wars, Império x Rebeldes eram povoados por vilões míticos e heróis e heroínas arquetípicas, mas numa guerra de escala intergaláctica, o que se esconde em cada pequena nave que explode são as pessoas comuns que fazem os números. O filme propunha mostrar, finalmente, o conflito pelo ponto de vista da escala dos proletários que integram a frente rebelde. Mas numa série marcada por um profundo confusionismo político, a execução deixa a desejar.
E aí chegamos a Andor (2022-2025). Confesso que nunca havia assistido a nenhum dos seriados derivados do mundo criado por George Lucas. Mas ouvi muitos elogios e várias pessoas atestavam que as sérias funcionavam de maneira independente (ao contrário da Marvel, que demanda ver 13 filmes, 5 seriados e 7 manuais de instruções antes de assistir a qualquer coisa). O seriado foi criado por Tony Gilroy, que é roteirista de obras como Armeggedon (1998), a franquia Bourne e o próprio Rogue One. Hmmm. Bom, o protagonista é Cassian Andor, interpretado por Diego Luna, e um dos personagens principais de Rogue One. No começo da série ele é uma das crianças indígenas de um planeta destruído por uma intervenção imperial e é meio sequestrado meio salvo, de qualquer forma completamente adotado por uma viajante espacial, Maarva (Fiona Shaw), e seu marido Clem (Gary Beadle). A partir daí a série vai narrar como ele vai chegar a ser quem é, um dos integrantes da Aliança Rebelde.
Mas apesar de Andor ser um forte protagonista, a série não cai em um erro comum de narrativas hollywoodianas, que é a construção do herói solitário. A trajetória do personagem, de sua adoção, passando por todas as intempéries, que incluem prisão, contato com os rebeldes e posterior radicalização, em nenhum momento o coloca como um líder, embora pudesse correr esse risco. Ele está sempre mergulhado em contextos coletivos de luta, rodeado ora por pessoas mais experientes ora por menos, criando vínculos colaborativos. No sistema prisional ou na guerrilha, ele se insere em organização e é ali que ele aprende que faz a diferença.
Um dos aspectos mais interessantes da série é dar escala a uma revolução, que jamais se faz apenas por um herói, uma princesa, um caubói e um cachorro, por mais simpáticos que eles sejam. E são esses bastidores, idealistas, mas também complexos, que são descortinados. Para cada centena de guerrilheiros que dão a vida a uma causa, existem figuras nebulosas, como articuladores que precisam fazer trabalhos mais ambíguos, menos bem compreendidos, mas ainda ainda assim extremamente necessários, porque são eles que detém o capital capaz, de por exemplo, financiar o tipo de operação que permite roubar equipamentos imperiais. E esse é o papel de Luthen Rael, interpretado com todas as nuances necessárias por Stellan Skarsgård.
Por outro lado, existe, ainda, a política institucional (ou o que resta dela) e a necessidade de negociar por meios legais a garantia de direitos. E aí entra a fascinante senadora Mon Mothma (Genevieve O’Reilly), que já aparecia na trilogia original, mas com papel reduzido. E em meio a complexidade apresentada, a série ainda nos fornece, entre outros personagens, a perspectiva de dois imperialistas ferrenhos, Dedra Meero (Denise Gough) e Syril Karn (Kyle Soller), movidos à crença no sistema, ao senso de pertencimento e ao dever.
Como se trata de uma história de franquia criada para uma plataforma de streaming de uma corporação detentora da marca, vez ou outra o roteiro dá uma derrapada e os discursos caem reducionismos ao nível “nós estamos lutando pela liberdade”. Que liberdade? Liberdade de quê? Para fazer o quê? Abstrações vazias que pouco dizem no cenário proposto. Mas, felizmente, esses pequenos deslizes duram pouco e, de modo geral, os discursos e personagens são muito bem elaborados. A escala da opressão fascista do Império é demonstrada reiteradamente em gestos de colonização, tortura e outras barbáries, deixando claras as engrenagens de violência necessárias para a manutenção desse poder. Em contrapartida, a luta dos protagonista é lenta, furtiva, não se dá em grandes gestos heroicos e pode frustrar quem espera arroubos de grandes realizações.
Como muitas produções da saga, a direção de arte arte é impecável e os figurinos de Michael Wilkinson são particularmente muito bonitos. É claro que os elementos tomados emprestados dos filmes estão lá, especialmente os uniformes do Império, mas ele consegue criar peças novas. Há um apreço particular pelos tons neutros e azuis em Coruscant e amarelos e terrosos em Ferrix, planeta onde Cassian foi criado, por exemplo. Ele também contrasta métodos de feitio, como a alfaiataria militar do império e a incorporação de técnicas de moulage, origami, e ao mesmo tempo corte preciso em tecidos ricos nas roupas de Mon Mothma, que representam sua terra natal Chandrila, mas também sua posição social privilegiada. Enquanto isso a mãe de Sybil parece saída de um sci-fi dos anos 60. Todos esses elementos são permeado por texturas e ornamentos que conferem profundidade ao universo criado. É de encher os olhos.
Entre tenta beleza estética, é claro que tudo isso ruiria se a estrutura afetiva dos personagens não comunicasse com o público. E comunica. Emociona. São apenas duas temporadas que culminam no filme citado. Ao final da série me vi afeiçoada a esse grupo de rebeldes improváveis e suas trajetórias erráticas. E não tive coragem, como me recomendaram, de rever Rogue One, com receio de que a falta de consistência daquele atrapalhar o trabalho tão paciente e bem desenvolvido desse. Prefiro manter em mente essa perspectiva. Quem, como eu, é uma pessoa cética em relação a Star Wars, pode se entregar a Andor sem medo: a série talvez seja melhor do qualquer um dos filmes ou quase isso.
Andor está disponível em streaming na Disney+


