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Animale (2024)

No imaginário geral, toureiros são homens com capas vermelhas que enfrentam touros e os ferem em uma batalha de vida ou morte, em que o sangue se espalha e apenas um dos dois animais consegue sair vivo, nem sempre o humano. Mas, em uma pequena cidade no sul da França, Emma Benestan retrata essas pessoas de forma mais pacífica, com roupas brancas, em embates de coragem em que a ideia é ninguém sair machucado. Vencer significa pegar um barbante amarrado nos chifres do touro, valendo algum dinheiro, sem derramar sangue. Os toureiros em Animale são homens, jovens em sua maioria, que praticamente dançam ao redor dos fortes animais, tentando pegar seus prêmios enquanto desviam de qualquer contato agressivo. Nesse meio, Nejma (Oulaya Amamra) busca tornar-se a primeira mulher da atividade no local, paralelamente cuidando dos touros e cavalos da fazenda.

Tudo é extremamente masculino e a protagonista é quase sempre a única mulher em cena. Entrar nessa área é como adentrar um ringue, cercada de predadores, mas com a falsa impressão de que aquele é um ambiente seguro. Afinal, todos os colegas são seus amigos, treinam juntos, brincam e bebem, estão todos no mesmo barco. Animale cria esse microcosmos isolado, em que as touradas são o centro da pequena sociedade, espelhando a vivência feminina em qualquer campo dominado pelos homens. Mais do que isso, o paralelo dos papeis de gênero com o embate entre humanos e animais é sua maior estrutura e seu ponto mais interessante.

Em dado momento, um dos colegas de Nejma diz que certamente foi um touro que a feriu, mas que estes animais só agem dessa forma se provocados. Inicialmente, o longa dá a entender que homens e touros estariam no mesmo nível, pela força e imponência no ambiente dominado por eles. É fácil compreender, no entanto, e bem rapidamente, que o poder masculino está atrelado à forma como eles conseguem oprimir a potência de seus oponentes. Mulheres e animais são contidos, subestimados e subjugados nesse espaço em que são minoria, não os mais fracos.

Benestan vale-se então de dois subgêneros do terror para elaborar sua crítica, o body horror e o rape and revenge. Para o primeiro, a transformação do corpo de Nejma se dá nessa construção da similaridade de como os touros são contidos pelos homens, e é gradual, chegando a cenas em que o paralelo se abre mais didaticamente à pessoa espectadora. A mutação, no entanto, só é revelada muito na frente e sofre pela falta de iluminação, provavelmente para esconder qualquer falha nos efeitos visuais. De início, são pequenas alterações corporais, até que algo mais visceral seja apresentado e é uma pena não poder enxergar melhor esse trabalho se concretizar. 

Animale é mais contido visualmente que a maioria dos filmes de horror da França dirigidos por mulheres. Isto até é positivo quando rejeita expor a violência que sua protagonista sofreu, lidando de forma sutil com a revelação (que já está bastante clara naquele ponto), mas deixa a desejar na falta de coragem de exibir seu lado fantástico com mais clareza. Isso porque a proposta do longa é bem interessante e elaborada, então o imagético faz falta para arrematar o impacto. Falando de horror, o medo de parecer tosco ou não tão bem acabado enfraquece mais uma obra do que possíveis efeitos visuais amadores. 

Se Benestan só coloca a pontinha dos pés no body horror, mostrando potencial no campo, o rape and revenge já vem com uma roupagem mais interessante. Fazendo questão que os corpos masculinos sejam agredidos em cena muito mais do que os femininos, Animale pauta a ocultação do abuso na confusão deixada na vítima. Assim, não explora o trauma de forma psicológica ou óbvia, mas permite que a narrativa deixe Nejma compreender a partir de seu corpo e de suas sensações o que sua mente bloqueou. O gênero aqui é usado para se importar mais com a punição aos abusadores, do que em construir uma sessão de terapia para a vítima. 

O processo de Nejma de assimilar a resposta corporal que está vivenciando vem com uma construção de conexão da mulher com o animal. A monstruosidade feminina tão usada no cinema de horror, encontra um paralelo em Animale com o instinto animalesco, mas, também, cria um laço empático entre as espécies que tem sua força e potência podadas pelos homens. Neste caso, a mulher, que tenta conquistar seu espaço no ambiente masculino e os enormes touros, domados como representação de poder. Não à toa Nejma conquista seu primeiro troféu ao demonstrar respeito para o animal, se posicionando como seu igual, enquanto os homens são constantemente retratados em grupos que impõe contenção, segurando, derrubando e amarrando os touros. O mesmo ocorre com a toureira, dominada tal qual um animal.

Benestan apresenta como único aliado nesse mundo masculino e opressivo o homem gay, amigo de Nejma em que ela pode confiar e quem a defende. É um comentário um tanto frágil, e problemático, até porque o longa busca isolar a protagonista de qualquer apoio feminino, inclusive da mãe, nessa ideia de construção de mundo de homens em que ela precisa vencer sozinha. Então, existem ingenuidades e problemas que impedem o resultado final de atingir um potencial maior, mas Animale possui uma bagagem interessante de horror que é eficaz na construção de ambientes opressivos e da resposta brutal dessas contenções.

Crítica de Cinema e formada em Rádio e TV. Apaixonada pela sétima arte desde sempre, trabalhando com marketing para pagar as contas e assistindo a filmes para viver.

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