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Cidade; Campo (2024)

Sou efusivamente entusiasta do cinema da Juliana Rojas. Adoro os curtas (que uso em oficinas de crítica e também escrevi sobre um deles para um livro); sou encantada pelos longas (e tive o prazer de entrevistá-la por ocasião de um lançamento); gosto da mistura de gêneros e das escolhas artísticas. Com isso, cada lançamento dessa, que é uma das minhas cineastas preferidas, sempre vem acompanhado de pelo menos alguma curiosidade, quando não ansiedade sobre a obra em questão.

Não foi diferente com Cidade; Campo. O filme foi agraciado com o prêmio de Melhor Direção na mostra Encontros do Festival de Berlim e Melhor Filme pelo júri da crítica e Melhor Atriz em Gramado. Ele repete a estrutura narrativa de As Boas Maneiras (2017), se dividindo em dois capítulos, mas dessa vez a proposta é exacerbada, porque as personagens de cada metade não são diretamente conectadas. Cidade e Campo. Cidade; Campo. Mais que uma continuidade, é uma quebra.

Na cidade, Joana (Fernanda Vianna), vinda do campo, tenta se adaptar na casa da irmã, que cria o neto. Ela ficou desalojada depois de sua casa ser destruída por um rompimento de barragem. No campo, Flavia (Mirella Façanha), vinda da cidade, volta para a fazenda de seu pai, com Mara (Bruna Linzmeyer), sua companheira, após o falecimento dele.

Joana se depara com um discurso fácil de auto-empreendedorismo de aplicativo, em um contexto em que é só mais uma figura anônima na metrópole. E ainda assim encontra nas colegas de faxina um refúgio. O encostar o pé na terra limitada do canteiro enquanto a lua brilha com as edificações ao fundo é uma busca pelo contato com aquilo que faz sentido, com uma natureza que dialoga. A montagem de Cristina Amaral contribui para a construção de uma atmosfera que flerta com o fantástico, como uma forma de expressar os estranhamentos e os despertencimentos. O fantasma do filho sumido é um lembrete de um lugar que não mais existe.

O cavalo branco Alecrim, a sutil homenagem à cineasta Adélia Sampaio, as cascas de tangerina que tão precisa quanto poeticamente sinalizam o alagamento: todas são escolhas estéticas que falam sobre um cinema que soma camadas. As bonitas interações entre a protagonista e sua família, bem como suas colegas de trabalho, abrem margem para esperança nesse contexto em que é preciso sorrir para limpar um vidro. A atuação de Vianna confere força à trajetória da personagem e eu tranquilamente assistiria horas de sua história.

A segunda metade do filme perde um pouco o fôlego. O casal, uma programadora e uma veterinária, chegam à fazenda que pertencia ao pai da primeira. A sombra desse pai paira como uma figura curiosa, inesperada em um interior que se apresenta misterioso. Mas se Joana redescobre uma nova vida após a perda de tudo que tinha, Flavia e Mara encontram a morte em um lugar que talvez já tenha dado que era para dar, e não lhes responda porque não há mais o que dizer. O palpável pode ser abstração. O desenho de som é fantasmagoria. A calmaria com que o relacionamento é retratado é reconfortante: a câmera distante as enquadra dançando em outro cômodo como se espiássemos um momento de respiro, da mesma forma como testemunhamos a intimidade nos pequenos detalhes.

Algo na transposição das personagens para o novo cenário parece não se encaixar. A experiência com a ayahuasca, por exemplo, não consegue romper com um retrato citadino e distante. É possível que seja porque elas mesmas não são (mais) desse lugar. A divisão do filme em duas partes de alguma forma faz parecer com que cada um deles poderia ser um capítulo de uma antologia. A primeira metade é mais internamente amarrada e emocionalmente embasada. A segunda é mais difusa. Mas escrevo esse texto 10 dias após tê-lo assistido e, com as percepções se solidificando enquanto os (pequenos) incômodos decantam, o fato de ter gostado menos dessa segunda parte por algum motivo pesa menos agora.

Rojas continua buscando novas formas de trabalhar com temas que lhe são caros e brinca com a linguagem de um jeito que sempre surpreende. A narrativa que daí resulta, embora não coesa no sentido estrito da palavra, se apresenta como um duplo no espelho, de forma que, afinal, a obra encontra seu equilíbrio no contraste. Filho; pai. Vida; morte. Recomeço; fim. Cidade; Campo. Lugares e perdas diferentes, mas uma sensação de permanência e de continuidade na ruptura e deslocamento.

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Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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