
Cidade dos Sonhos (Mulholland Dr., 2001)
Passando aqui para contar a experiência de rever Cidade dos Sonhos em tela grande, depois de mais de 20 anos da recepção juvenil desse que foi o primeiro filme de David Lynch que vi. Em 2001 eu era uma jovem universitária com tempo para maratonar a obra completa de realizadores que me interessava conhecer, me perder pelas trilhas sonoras e leituras de referência, além de ter tempo de qualidade para conversar com amigos sobre a paixão por cinema.
Hoje, velha universitária e trabalhadora CLT, reencontrar com esta obra foi um alívio em diversos níveis. Primeiro porque me trouxe de volta o desejo de escrever sobre; depois porque, mesmo conhecendo o filme, ser surpreendida novamente por ele foi como redescobrir um prazer esquecido. A bem da verdade, encontrei tempo para rever pois sabia da garantida recompensa.
Desta vez entendi que nesse filme Lynch estava falando sobre como é viver e envelhecer em Hollywood, numa escalada que vai do sonho do sucesso à certeza do fracasso e na medida do desejo que atravessa a todos como a mola propulsora dessa indústria. Envelhecer não é a única maneira de ser tornar invisível para esse mundo: basta não aceitar a indicação de um investidor ou o interesse sexual de um diretor, como bem nos apresentam as tramas secundárias de Cidade dos Sonhos. A melhor atitude nesse ecossistema parece ser se deixar levar pelo roteiro, geralmente ruim, de filmes que parecem todos iguais.
É neste ponto, o dos filmes que parecem mais do mesmo, que Lynch brilha, executando um produto diferente: ao articular dispositivos narrativos diversos sob o pano de fundo da história principal, o diretor intercala o encontro entre Diane/Betty e Rita/Camilla com esquetes de terror, musical e suspense. É como participar de uma sessão de cinema de feira, acompanhando diversas histórias aparentemente desconexas para, de repente, voltar a fita principal, onde encontramos duas personagens com padrões de beleza e tipos comuns ao cinema norte-americano clássico: a dupla blondie e brunette. E este é um dos dispositivos de estilo utilizados para trazer algum índice de familiaridade com histórias contadas em cinemas, ao mesmo tempo em que as escolhas narrativas nos afastam dos esquemas conhecidos, causando assim um choque que nos mantém atentos à próxima sequência.
Quando penso no cinema de David Lynch a maior pergunta que me surge é como ele conseguia criar produtos que possuem ao mesmo tempo apelo popular aliado à subversão de esquemas clássicos. Um dia passei a chamar o que ele fazia de magia, pois só um mago sabe como manipular as coisas de forma que elas pareçam algo que não são. Em Cidade dos Sonhos, por exemplo, ele escolhe um par de objetos azuis como símbolos de transição. É como hipnotizar o espectador, depois acordá-lo do transe e lançá-lo à deriva: na resolução do enigma da chave, saimos de um universo solar, em que pontos de brilho permeiam a tela, seja no sueter de Diane ou no reflexo da luz do sol em seus cabelos, e acordamos numa espécie de universo paralelo, o opaco mundo de Betty. A história se encaminha para o final, mas o brilho da cena da cantora chorona, que nos emociona mesmo sabendo que é playback, ficará conosco por dias, anos. Nesse caso, e só nesse, não parece exagero falar na magia do cinema.



