
Conversa com Amy Adams sobre Canina (Nightbitch)
A cineasta Marielle Heller tem uma carreira que une a inventividade visual com narrativas sensíveis, em filmes como Poderia Me Perdoar? (2018) e Um Lindo Dia na Vizinhança (2019). Ela, que é mãe de duas crianças, uma nascida em 2014 e outra em 2020, em meio à pandemia de Covid-19, recebeu a tarefa de adaptar Nightbitch, romance de Rachel Yoder. O bestseller conta a história de uma artista que se tornou mãe e optou por dar uma pausa na carreira para cuidar da criança exclusivamente. E então ela se convence que está virando uma cachorra. O filme, chamado Canina, tem Amy Adams no papel principal e traz uma visão cômica e emocionante da maternidade tomando um rumo fantástico. No dia 8 de outubro de 2024, pude participar de uma entrevista com a atriz. O resultado você confere abaixo.
Você leu o livro? O que te atraiu a trabalhar neste projeto?
Bem, primeiro recebi a transcrição do livro antes de ele ser publicado. E simplesmente achei que Rachel (Yoder, autora do livro) tinha uma narrativa tão única, sabe? E havia algo com o qual me identifiquei profundamente sobre a ideia de perda de identidade e transformação, usando a maternidade como uma alegoria para essas coisas. Foi algo que realmente me tocou. Ao pensar em como trazer isso à vida, percebi que, por ser tão específico no tom e exigir muitos talentos visuais únicos, sabia que seria a Marielle quem deveria dirigir. Na época, ela tinha acabado de ter um bebê. Estávamos em isolamento, ela tinha um bebê e uma criança pequena e estava vivendo em uma cabana com o marido, trabalhando. Achei que ela teria uma perspectiva única e pessoal sobre essa história. Houve uma série de fatores que nos levaram a trabalhar no filme. Ela escreveu o roteiro relativamente rápido, e acho que fizemos o filme cerca de um ano e meio depois de começarmos a conversar, mas tivemos muitas discussões ao longo do caminho. Assim, quando chegamos ao set, já tínhamos uma comunicação bem afinada e um entendimento claro do que ela queria transmitir e de como abordaria o material. Foi um processo de preparação realmente interessante, porque muitas vezes era impossível prever o que aconteceria, já que sabíamos que trabalharíamos com crianças de três anos (Emmett e Arleigh Snowden, os gêmeos que interpretam o filho da personagem). Então, era muito importante que eu tivesse uma compreensão clara do que precisava acontecer em qualquer momento, para que pudesse estar muito livre e entrar em um estado de brincadeira com as crianças.
Além disso, o jeito único de Marielle contar histórias, como quebrar a quarta parede em certos momentos, trouxe uma sensação maravilhosa de liberdade na forma de abordar o filme da maneira como ela faz. Então, isso realmente permitiu, desde que eu fizesse minha preparação, no sentido de aprender tudo, entender de onde ela vinha. Isso realmente me permitiu, desde que eu tivesse feito minha preparação — aprendendo tudo, entendendo de onde ela vinha —, estar pronta para essa abordagem.
O livro também foi uma ótima referência, então eu tinha muitas pessoas com quem compartilhar ideias.
Como foi sua experiência trabalhando com Marielle Heller?
Ela e eu somos pessoas muito pragmáticas, mas também acreditamos profundamente que nossa experiência com a maternidade é de otimismo e grande esperança, certo? Buscamos isso. E é onde queríamos deixar o filme, dentro dessa perspectiva. Não queríamos encerrar o filme com um comentário negativo, porque nossa experiência e o que acreditamos sobre a parentalidade são muito positivos. Queríamos enaltecer essa vivência. Eu amei completamente quando a Marielle me entregou o roteiro e eu soube que ela estava tendo outro bebê, escolhendo passar por tudo novamente. Para mim, isso foi a visão máxima de esperança. E, realmente, de amor. Houve uma cena intensa. É uma grande alegoria sobre identidade, transformação e empoderamento. E eu acredito que, falando sobre minha própria filha, ela se beneficiou muito de uma comunidade ao seu redor, composta por pais e não pais — sejam professores, tias e tios, amigos. Há um papel essencial que as pessoas desempenham na vida das crianças, mesmo que não sejam pais. Agora me desviei um pouco do tema [risos]. Mas eu me senti muito empoderada. Houve algo realmente maravilhoso em assumir o desafio de dizer em voz alta aquilo que muitas vezes fica calado.
Marielle fala muito sobre isso, sobre dar voz a esse medo profundo de invisibilidade e insignificância. O tom de Marielle e os elementos diferentes que ela trouxe foram incríveis. Realmente espero que o filme inicie conversas. Até mesmo entre os espectadores, as discussões que ele já gerou são muito interessantes para mim, sobre mulheres, os corpos das mulheres, as funções corporais, os desejos femininos, a raiva feminina, a frustração.
E também sobre essa barra de expectativas que está sempre se movendo e que é tão difícil de alcançar porque nunca para de subir, sabe? Espero que continuemos falando sobre isso, para que possamos promover mudanças significativas na maneira como apoiamos as mulheres e as famílias. Isso ajudará a oferecer condições para que elas cuidem de seus filhos e realmente deem uma plataforma para elevar nosso futuro.
Qual a sua percepção sobre o retrato da personagem e como você se relaciona com ela?
Acho que o interessante na forma como o filme aborda a identidade é essa ideia de como nos excluir da comunidade pode ser tão isolador. E é exatamente aí que a personagem se encontra: ela já não se identifica mais com os amigos que costumava ter e, ao mesmo tempo, ainda não encontrou um novo grupo com o qual se identifique. Parte disso, acredito, está no fato de ela não querer abrir mão de uma ideia de si mesma, certo? Como se não quisesse deixar para trás essa pessoa que ela acreditava ser.
E acho que, quando ela começa a abraçar a alegria, a brincadeira e a natureza instintiva e selvagem da maternidade, ela realmente passa a enxergar isso como algo em que pode… Bem, eu queria dizer “cravar os dentes”, e é exatamente isso que acabei dizendo. Mas, enfim, ela começa a se sentir mais validada nessa experiência.
Ela também reflete muito, e isso aparece no livro, sobre a falta de apoio para mães dentro da comunidade. Essa é uma questão com a qual me identifico profundamente. Mas, hoje, com minha filha já com 14 anos, tenho uma perspectiva diferente.
Um ponto que Marielle comunica tão bem no início do filme é a monotonia, mostrada através de um belo uso de montagem. O que aprendi, e foi maravilhoso voltar a esse ponto com a personagem, é que a monotonia acaba se transformando na memória, no que você carrega consigo.
E, pensando nisso, o que eu não daria para cantar uma canção de ninar para minha filha pela quinta vez hoje à noite. Há também uma reformulação de identidade pela qual precisei passar, algo que acredito que todos enfrentem em diferentes momentos da vida. Não é algo exclusivo da parentalidade. Isso pode acontecer em várias fases da vida, e especialmente para as mulheres. Passamos pela puberdade, maternidade, menopausa — são muitas transformações, muitas mudanças de identidade. O que amo no filme é a dualidade que ele apresenta: mostra a luta, mas também o amor profundo e a alegria.
Quais mudanças você percebe em si mesma após a maternidade, e como pode conectar isso ao filme? Ela mudou a maneira como você trabalha?
Como pessoa, me tornei mais paciente, porque aprendi essa habilidade através da maternidade. E posso trazer isso para a comunidade de outros pais quando falamos sobre nossas experiências. É um trabalho realmente desafiador criar filhos, cada pessoa traz suas próprias habilidades únicas, que vão se desenvolvendo ao longo do tempo, e ter essa rede de apoio faz toda a diferença.
Falando de uma perspectiva mais ampla, percebo como há uma pressão performativa em torno da parentalidade, especialmente com as redes sociais. Apesar de eu não ser muito ativa nelas, vejo como elas podem gerar um sentimento de comparação. Até pequenos detalhes, como dar uma salsicha para minha filha, podem parecer uma decisão que será julgada. Essa pressão não é exclusiva dos pais; afeta também as crianças e todos nós.
Sobre minha experiência pessoal com a maternidade, algo que me marcou recentemente foi a rapidez com que o tempo passa. Quando minha filha era mais nova, eu tinha uma ideia muito definida de como deveria fazer tudo. Eu queria controlar coisas pequenas, como as roupas que ela usava. Hoje, olhando para trás, percebo que fui muito rígida em alguns momentos. Uma cena do filme que me emocionou foi a de pintura. Me fez pensar: por que não deixei minha filha ser mais livre? Por que senti que precisava ensiná-la a colorir dentro de uma página específica? Talvez isso fosse um reflexo do meu próprio medo, tentando protegê-la ao ensiná-la a “ficar dentro da caixa”. Agora que ela cresceu e me mostrou sua resiliência, me tornei muito mais aberta. Deixo que ela lidere em muitos aspectos. Temos conversas profundas, e eu liberei as expectativas rígidas sobre quem ela deveria ser. Claro, ainda tenho opiniões, como qualquer mãe, mas aprendi a deixar que ela encontre seu próprio caminho, sua voz e identidade.
Isso mudou a forma como encaro meu trabalho, embora tenha sido uma jornada até aqui. Também me ajudou a entender que a maternidade não é uma experiência uniforme. Cada pessoa vivencia a parentalidade de maneira diferente, dependendo de suas circunstâncias e perspectivas. O filme aborda isso de forma bela ao mostrar a experiência singular dessa mulher e sua “matilha”, que encara a maternidade como um grande projeto. Apesar disso, todos têm experiências únicas.
Como foi adaptar a personagem por meio de sua atuação?
Uma das coisas que mais amei no livro e, especialmente, no roteiro de Marielle, foi como os conflitos nos relacionamentos foram retratados de forma tão precisa. Isso era algo que eu nunca havia interpretado antes de maneira tão única, orgânica e realista. Os detalhes mais sutis eram impressionantes. Por exemplo, a cena em que o marido fala sobre fazer o café. Essa foi perfeita, e eu nem percebi totalmente até a última vez que assisti. Acho que ressoou comigo dessa vez porque, no verão passado, meu marido e eu tivemos um pequeno desentendimento sobre a cafeteira. Eu tinha feito café no dia anterior, estávamos em um lugar novo, eu estava trabalhando, e ele perguntou: “Como isso funciona?” E minha resposta foi algo como: “Se eu descobri como funciona, você também pode descobrir.” [Risos] Então, essa troca de comunicação, de frustração e compreensão mútua, me pareceu tão autêntica. Em termos de dinâmica tradicional ou não tradicional, meu relacionamento com meu marido tem momentos em que alternamos papéis. Ele é ótimo em assumir responsabilidades, mas ainda não consegue descobrir como usar a cafeteira sozinho! [Risos]
Eu acho que um dos aspectos-chave do filme é usar o fantástico para abordar a parentalidade, a carreira e o que a protagonista está enfrentando. O que você acha dessa mistura de ficção científica, horror e comédia?
Bem, uma das razões pelas quais fomos diretamente à Marielle foi por causa do talento dela com o tom e porque, no passado, ela já havia desafiado gêneros de maneiras muito interessantes.
Quando assisti ao resultado final, fiquei surpresa por ele ser engraçado, porque, durante as filmagens, tudo parecia tão ancorado na verdade. Isso era muito importante tanto para Marielle quanto para mim: fundamentar tudo na maior autenticidade possível. Foi algo que ajudou bastante, especialmente porque essa é uma história muito pessoal para Marielle, que tem uma compreensão profunda sobre a verdade de cada momento e como queríamos transmiti-la.
Mas estávamos apenas tentando realmente fundamentar isso o máximo possível, para que o fio condutor de verdade e de autenticidade meio que atravessasse todas as diferentes mudanças de tom.
O filme Canina (Nightbitch) estreia no Brasil em 24 de janeiro no Disney+.
Agradeço a A24 e ao Globo de Ouro pela oportunidade de entrevista, realizada em ambiente virtual e editada visando melhor clareza.



2 Comentários
Penélope Eiko Aragaki Salles
Parabéns pela entrevista! Entre as muitas que li sobre o filme, esta se destacou por abordar com profundidade as questões da parentalidade, especialmente da maternidade, sem cair em superficialidades ou simplificações.
Isabel Wittmann
Muito obrigada pelo seu comentário, Penélope! Fico feliz que tenha gostado da entrevista! Foi realmente uma conversa muito boa, aberta e franca por parte da Amy Adams, que claramente queria falar sobre sua experiência de parentalidade e maternidade 🙂 <3