Entrevista | Shih-Ching Tsou e Sean Baker, de A Garota Canhota
Durante a Mostra Internacional de Cinema em São Paulo assiste ao filme A Garota Canhota, dirigido por Shih-Ching Tsou e co-roteirizado por ela e Sean Baker. O cineasta oscarizado também produziu e montou seu filme. Acontece que Shih-Ching é sua colaboradora de longa data, tendo trabalhado como figurinista, atriz, produtora em outros trabalhos dele, em um parceria que se estende por mais de duas décadas, desde quando co-dirigiram Take Out (2004) . E agora ela volta a dirigir, pela primeira vez de modo solo, uma história que se passa em Taipei. O filme se tornou a aposta de Taiwan para uma vaga ao Oscar de Melhor Filme Internacional.
A Garota Canhota (Left Handed Girl) trata de gerações de mulheres: uma mãe, Shu-Fen (Janel Tsai), que retorna para sua cidade, onde abre uma barraca de comida na feira, junto com a filha adolescente I-Ann (Ma Shih-yuan) e a caçula I-Jing (Nina Yeh). Ao mesmo tempo em que acompanha suas dificuldades financeiras, o filme mostra o conflito ocasionado pelo fato da menina começar a ser incomodada pelo avô quando esse percebe que ela é canhota.
No dia 25 de novembro de 2025 pude participar de uma entrevista com Shih-Ching Tsou e Sean Baker e o resultado você confere abaixo.
Isabel Wittmann: Seu filme foi exibido aqui no Brasil, na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, e muitos de seus temas ressoam em diferentes culturas e lugares, como dificuldades financeiras e relações intergeracionais. O público aqui amou! Foi escolhido um dos 12 melhores filmes pelo público, entre 118 exibidos no festival. Quais são suas expectativas em relação à recepção do filme pelo público global e, talvez, a possibilidade de ser um potencial concorrente ao Oscar?
Shih-Ching Tsou: Nossa, estou tão feliz! Sabe, desde a estreia em Cannes, o filme tem recebido muitas reações positivas. E acho que o tabu da mão esquerda realmente ressoou em muitas culturas diferentes, sabe? Então, acho que isso me surpreendeu, porque eu não imaginava que tantas pessoas teriam essa reação. E também a dinâmica familiar. Acho que isso é algo com que todos se identificam. Sabe, você tem família, você sempre sabe como é. Às vezes vocês brigam e às vezes riem, choram juntos. Então, estou muito, muito feliz em saber que o público brasileiro realmente recebeu o filme e apreciou.
Sean Baker: E estamos radiantes com o filme sendo a indicação de Taiwan ao Oscar. Quer dizer, é realmente incrível. E há uma grande competição este ano, mas acho que, à medida que a notícia se espalha e há tanta positividade em relação a A Garota Canhota, quem sabe, talvez possamos incluí-lo na lista de pré-selecionados. Veremos. Veremos!
Isabel: O filme é um drama, mas tem muitos momentos leves e doces. Queria saber como vocês equilibram esses elementos no roteiro e na montagem?
Shih-Ching: Acho que no roteiro, queremos mostrar todos os aspectos da vida dessa família em Taipei. Então, obviamente, elas têm uma vida difícil. E as dificuldades e todas as lutas que enfrentam. Mas também queremos mostrar a parte feliz da vida delas. É todo o espectro da vida. E, sabe, acho que é assim que encontramos esse equilíbrio no roteiro.
Sean: Sim, eu gostaria de acrescentar que, sabe, eu e a Shih-Ching achamos a comédia comportamental bastante interessante. Às vezes, assistir duas pessoas brigando pode ser engraçado porque, de certa forma, nos vemos nesses momentos. E, por isso, há muito disso no filme. E tudo ganha vida graças a essas atrizes maravilhosas, com performances incríveis que realmente entendem o equilíbrio entre comédia e drama. Então, quando a situação fica muito pesada, as atrizes sempre sabem como amenizá-la. Talvez com uma expressão facial ou algo que dê um toque cômico ao momento.
Isabel: Nina Ye é a atriz perfeita para o papel principal, que exige uma atuação complexa para alguém tão nova. Conte-nos, foi difícil encontrar a atriz ideal para o papel?
Shih-Ching: Bem, encontrar a Nina levou um tempo. Primeiro, fiz algumas rodadas de testes nas redes sociais e assisti a uns 50 ou 70 vídeos de audição. No fim, ela foi recomendada por um agente em Taiwan. Na época, ela já fazia muitos comerciais desde os três anos de idade. E quando a escolhi, ela tinha seis. Então, ela já tinha três anos de experiência em comerciais. Então, quando a encontrei, ela já sabia como se comportar no set. Sabia como esperar a sua vez e como se preparar, decorar as falas e o roteiro em casa. E quando chegava ao set, estava sempre muito preparada, sabia exatamente o que dizer. E como sempre havia outros atores no set, eu pedia para ela meio que brincar de faz de conta. Sabe, a gente diz “finja que sua mãe e sua irmã estão aqui. Elas estão brigando ou conversando sobre algo que você não entende muito bem. Mas você ainda tenta ouvir e faz suas coisas. Tipo desenhar ou brincar com seus jogos. Mas você continua ouvindo elas”. Então, eu acho que, através dessa brincadeira de faz de conta, ela aprende a fazer a parte dela.
Isabel: Quero perguntar sobre esse contexto de trabalhar em países diferentes. Vocês trabalharam juntos em muitos filmes nos Estados Unidos, e este filme foi rodado em Taiwan. Então, quero perguntar, qual foi a principal diferença que vocês sentiram ao trabalhar nesse contexto diferente?
Shih-Ching: Hum, a principal coisa acho que é só que filmar nos EUA geralmente envolve muitas regras de diferentes sindicatos. Então acho que essa pode ser a única diferença. Nós não tivemos que lidar com as regras sindicais em Taipei. Então, sabe, foi um pouco mais fácil porque não tínhamos que lidar com muita papelada. Não tínhamos muitos prazos para as coisas. Não havia ninguém no set nos observando. Quando a Nina chegava ou saía do set, não era tão rígido. Claro, ainda temos a legislação trabalhista, que nos ajuda a saber a que horas a Nina deve entrar e sair. Mas nos EUA, existem regras muito rígidas para as pessoas no set. Elas precisam ter os documentos, assinar a entrada e a saída. Acho que isso se deve principalmente aos sindicatos. Não temos sindicatos assim em Taiwan.
Sean: Não tenho muito a acrescentar, porque a Shih-Ching foi a produtora e diretora no local. Então, a produção foi toda feita por ela.

Pergunta: Assim como A Garota Canhota, Tangerina (Tangerine, 2015) foi gravado todo com um celular. Na época, Shih-Ching, você era a produtora. Sean, você era o diretor, então agora houve uma inversão de papéis. Essa experiência ajudou vocês na criação deste filme agora?
Shih-Ching: Eu acho que definitivamente muito. Quando filmamos Tangerina, era com um iPhone 5. E essa foi como uma primeira experiência de aprendizado para nós dois. Sabe, como filmar com um iPhone. Como garantir que a qualidade do vídeo fosse boa e como superar todos os problemas técnicos. Então, quando fiz A Garota Canhota, ambos são fotógrafos taiwaneses, e eles aprendem muito rápido, e filmamos com um iPhone 13 Pro Max. Ambos têm câmeras e estabilizadores. E acho que a única dificuldade é que a filmagem se passa nos mercados noturnos de Taipei. E você já foi a um mercado noturno? É realmente uma loucura. Sabe, todo dia as pessoas vão lá e é tudo muito frenético. Então, para nos adaptarmos a isso, tivemos que esconder a câmera. Tivemos que garantir que as pessoas não nos vissem filmando. Então tivemos que usar uma equipe bem pequena. Assim como em Tangerina, tínhamos de cinco a seis membros da equipe no set todos os dias com nossos atores.
Sean: Sim, eu só gostaria de acrescentar que acho que não foi apenas o uso do iPhone, mas muitas técnicas que Shih-Ching empregou em A Garota Canhota que vieram dos anos em que trabalhamos juntos. Sabe, as lições que nós dois aprendemos fazendo esses filmes. A Shih-Ching foi produtora em vários dos meus filmes, mas ela não era só produtora. Como minhas equipes eram muito pequenas, a Shih-Ching desempenhava várias funções, desde seleção de elenco e supervisão de roteiro até figurino e, às vezes, até atuação. Então, tudo isso levou ao que vocês veem na tela em A Garota Canhota. E a última coisa que eu vou dizer sobre o iPhone é que ele continua, obviamente. É uma tecnologia em constante evolução. Então, a cada versão desse telefone, surgem mais recursos, ou, no caso dos celulares em geral, surgem pequenos avanços tecnológicos que nos dão mais ferramentas como cineastas. É realmente incrível.
Pergunta: Você já mencionou a fotografia com o iPhone. Mas as cores do filme e também a iluminação chamam a atenção porque o filme é muito vívido e colorido. Então, eu queria saber como foi trabalhar com os diretores de fotografia para alcançar essa atmosfera específica para o filme?
Shih-Ching: Ah, sim. Sabe, especialmente quando filmamos no mercado noturno, usamos principalmente luz variável no set. Sabe, no mercado. Então, naturalmente, o mercado é muito iluminado, com todas as luzes, sabe? Tipo, cada loja tem um monte de luzes. Então, na parte da iluminação, não fizemos muita coisa. Só talvez no beco escuro quando ela estava correndo. Adicionamos luzes por cima. Então quando ela corre, vemos as luzes acendendo uma a uma. Então, na iluminação, não fizemos muita coisa. Mas fizemos muito na pós-produção, na correção de cores. Porque queríamos garantir que fosse o ponto de vista de uma criança, sabe? Então, acho que a visão delas é muito melhor do que a de um adulto. Então, queríamos mostrar o filme do ponto de vista dessa garotinha. Queríamos adicionar cor. Queríamos garantir que parecesse quase um parquinho noturno para ela. Então, foi assim que fizemos muita correção de cores na pós-produção.
Sean: Shih-Ching e seu diretor de fotografia, Ko-Chin Chen, fizeram um trabalho incrível. Não apenas capturando as belas cores de Taipei, mas estou realmente impressionado com os movimentos de câmera dela. São muito fluidos. Muito fluentes. A câmera segue ou guia nossos personagens em um movimento tão bonito e fluido. O que realmente me ajudou na montagem, porque a energia estava presente em todas as filmagens. E eu estava apenas encontrando um ritmo para tudo isso. Estou realmente muito impressionado com a forma como foi filmado.
Pergunta: A superstição molda as pessoas de maneiras engraçadas e, às vezes, extremas. Existe alguma superstição em que vocês acreditam? E vocês acham que a superstição ainda tem poder real na sociedade moderna?
Shih-Ching: Muito interessante. Antes de fazer este filme em Taiwan, conversei com algumas pessoas sobre o tabu de ser canhoto. E muitas me disseram que isso não existe mais. Mas quando escolhi a Nina para o papel, no primeiro dia de filmagem, a mãe dela me contou que a Nina era canhota. E ela foi corrigida muito cedo, antes mesmo de ir para o jardim de infância. Então, quando a Nina chegou ao set, tivemos que treiná-la novamente para usar a mão esquerda, porque ela havia sido condicionada a usar a mão direita. E isso só mostra o quão profundamente essa superstição ainda está enraizada na cultura. E as pessoas simplesmente não falam sobre isso. Mas ela ainda existe. Especialmente, como no meu exemplo, a Nina. Ela está no meu filme e tinha seis anos na época. E isso foi em 2022. Então, acredito que ainda esteja presente na cultura. Mas as pessoas simplesmente não falam sobre isso.
Sean: E eu não me considero uma pessoa muito supersticiosa. Mas sempre penso se estou dando azar para mim mesmo ou para nossa equipe quando conversamos sobre [risos] o futuro dos nossos projetos cinematográficos. Por exemplo, com A Garota Canhota, eu sempre digo: “Espero que o filme seja selecionado. Bate na madeira”. E aí eu tenho que ir procurar um pedaço de madeira e bater. [risos] Pronto!
A Garota Canhota está disponível em streaming na Netflix.
Agradeço à Netflix pela oportunidade de entrevista, realizada em ambiente virtual e editada visando melhor clareza.



