Frida (2002)
É difícil analisar o filme Frida (2002), dirigido por Julie Taymor, sem falar sobre seu processo de produção, uma vez que ele está completamente ligado ao resultado final do filme. O filme retrata a história da pintora mexicana Frida Kahlo de quando ela era uma estudante e sofreu um acidente de ônibus que marcou a sua vida, até a sua morte. A figura histórica é interpretada por Salma Hayek, de quem esse era um projeto pessoal, que tentava tirar do papel há muito tempo.
Salma Hayek relatou em um texto chamado “Harvey Weinstein is my monster too” (Harvey Weinstein é meu monstro também, em tradução livre), publicado no New York Times em 12 de dezembro de 2017, a respeito do comportamento do produtor em relação a ela. Hayek trabalhou com Weinstein nos filmes A Balada do Pistoleiro (Desperado, 1995) e Um Drink no Inferno (From Dusk Till Dawn, 1996), ambos dirigidos por Robert Rodriguez. Ela queria muito poder contar a história da Frida, porque acreditava que sua obra, por muito tempo, não foi valorizada como a dos muralistas mexicanos, como Diego Rivera.
Para isso ela levou o projeto para Weinstein e aceitou receber o mínimo exigido pelo sindicato de atores, recebeu crédito como produtora mas não foi paga pelo trabalho e também assinou um contrato para estrelar outros filmes posteriores produzidos por Weinstein. Daí para frente ele tentava entrar no quarto dela de surpresa nas locações, pedia pra ela tomar banho com ele, para ele fazer massagem nela nua, entre outras situações de assédio constante. Ela recusou. Ele a ameaçou de morte e criou condições impossíveis para a realização do filme: precisava ter quatro atores famosos (entram em cena Alfred Molina, Ashley Judd, Antonio Banderas e Edward Norton), ser dirigido por alguém desconhecido (aqui entra Julie Taymor), ter o roteiro reescrito (Norton fez isso sem ser creditado) e captar 10 milhões de dólares em recursos. Ela conseguiu tudo com ajuda de amigas e amigos. Ele tentou boicotar o lançamento, espalhou que ela e Julie Taymor eram difíceis de lidar. No final Weinstein disse que só lançaria o filme se tirasse mais de 80 de 100 nas primeiras sessões teste, patamar que menos de 10% dos filmes atingem. Conseguiu 85 e ele ameaçou agredir Julie Taymor. Weistein fez Salma Hayek cumprir o resto do contrato com papéis secundários, não as protagonistas que haviam sido acordadas. Harvey Weinstein foi condenado por estupro em terceiro grau e ato sexual criminoso em terceiro grau e inocentado das outras 5 acusações mais graves em 24 de fevereiro de 2020 agora.
Por isso não é possível pensar nesse filme sem relacioná-lo às limitações que lhe foram impostas. E é possível pensar que talvez por isso ele foque mais no sofrimento de Frida e nos homens em torno dela, seja Diego Rivera (Alfred Molina), seja Trotsky (Geoffrey Rush) do que em sua vida e obra, ou ainda a força com que enfrentou todas os problemas de saúde.
Outra consequência perceptível é a forma fetichizada com que a sua bissexualidade é retratada, sempre para um olhar externo à cena. Weinstein exigiu que o filme tivesse uma cena de sexo com outra mulher e Hayek precisou tomar tranquilizante pra realizá-la. Nesse sentido, a cena em que Frida está com a cantora negra em Paris é a pior do filme, porque usou o corpo de uma mulher negra como mero objeto de desejo. Em outras cenas pelo menos se disfarça esse patente olhar masculino fetichizante, apresentando as situações como uma possibilidade de liberdade de expressão sexual por parte das mulheres, demonstrando seus desejos e vivendo eles. Mas a cantora, que sintomaticamente não tem sequer um nome, também não tem direito de expressar essa sexualidade: é justamente apenas o objeto do desejo da Frida.
Além disso, o filme apaga o forte envolvimento de Frida com a política, mostrando que ela começou a circular nos meios comunistas quando se envolveu com Diego. Na vida real, ela conheceu ele lá. Pela leitura do Diário de Frida, anos atrás, tenho que ela é uma pessoa intensa, vívida, forte e por isso imagino que um filme, especialmente estadunidense, provavelmente não daria conta de abordar suas características e contradições.
Hoje ela virou uma marca da moda, com objetos de diversos tipos sendo vendidos com o rosto dela em todo lugar. Ainda que tenha sido apropriada como uma espécie de ícone feminista, nesse contexto capitalista, existe três características suas que são constantemente apagadas: o fato de ser comunista; de ser mulher com deficiência e de ser bissexual. Esse último item, como falado, aparece no filme, mas tem um forte olhar masculino que o envolve, influenciado pela produção. O comunismo aparece mais como mote do Rivera do que dela mesma. Fica a percepção que desses três, o aspecto que o filme capta melhor é o da deficiência.
Apesar desses problemas, gosto da forma criativa como Julie Taymor expressa os aspectos visuais da narrativa. Talvez isso possa ser mal compreendido, mas devo dizer que a cena do acidente é linda. O corpo da Frida parece uma imagem de uma mártir medieval, coberta de sangue e ouro, com a barra de metal atravessada no quadril como um São Sebastião e suas flechas.
As composições das cenas são muito interessantes. Naquela em que ela, ainda estudante, vai olhar os murais de Rivera, ela é enquadrada em contra plongeé contra a imagem de um homem de braços aberto no teto, formando uma espécie de ampulheta entre as duas formas. Por fim a maneira como Taymor usa a transposição dos quadros para encenações que às vezes fazem transições de cenas ou refletem momentos emocionais da Frida, funciona ao trazer a obra da pintora visualmente para o filme.
Todo o design de produção é impecável. A casa pintada de azul vivo com jardim de cactus, recriando a real, é uma estética tão pouco eurocentrada que me faz pensar no quadro As Duas Fridas, que aborda justamente a forma como ela negociava a sua identidade partida entre a mexicana indígena e a europeia alemã. A riqueza de detalhes nos tecidos, bordados, colares, acessório e outros objetos acrescenta muito às cenas.
Frida é uma filme partido. Assistindo a ele nós vemos o filme que foi e o filme que poderia ter sido. Há que se pensar o que seria diferente em melhores condições, dado que o talento de Julie Taymor é patente.
Crítica adaptada do roteiro da minha fala no podcast Feito por Elas #98 Frida.