
Homem com H (2025)
Homem com H (2025) é a balada de um sobrevivente. A cinebiografia de Ney Matogrosso é o canto de um homem meio bicho que faz do palco um habitat para a constante provocação. O filme de Esmir Filho faz um musical sem ser musical, na medida em que costura a história do artista pela arte que ele leva ao mundo há mais de cinco décadas. A beleza da obra de Ney é o fio condutor de uma história que mergulha nos vários seres que nele moram.
A dualidade entre artista e homem é o centro narrativo do filme desde a abertura, com um Ney criança, pequeno em meio aos mistérios da floresta, passando pela juventude na Aeronáutica (com direito a planos que evocam Bom Trabalho, de Claire Denis), até os romances, os flertes na praia, os embates familiares e as seguidas perdas com a epidemia do HIV/AIDS nos anos 1980 e 1990. Tudo é envolto pela música e pelas performances do instrumento primordial de Ney Matogrosso: o corpo. A montagem é tão fluida quanto as coreografias dele com microfone em punho. Em tela, cenas de sexo equilibram plasticidade e paixão, emolduradas pela voz cortante do biografado. Elas se intercalam com imagens de Ney no palco, lugar que ele define como válvula de escape e de “desrepressão”, e que é mais do que o espaço onde os calcanhares e quadris do artista se movimentam. É onde o filme consegue dar sentido aos acontecimentos que se desenrolam nos bastidores.
No filme, Ney se funde com Jesuíta Barbosa, que o interpreta na fase adulta, em uma atuação que vai além da mera reprodução dos trejeitos do artista no palco. Vale ressaltar que Barbosa fica realmente parecido com o cantor, mas nem apenas de semelhança física pela maquiagem ou trucagens sobrevivem uma cinebiografia. A alma de Ney está ali, e isso é perceptível quando o vemos pela primeira vez com os futuros colegas de Secos e Molhados, se deixando levar pela Rosa de Hiroshima (poema de Vinicius de Moraes que virou uma das músicas mais conhecidas da banda).
Jesuíta some em Ney, a junção do ator e do cantor em uma ópera de um homem só em performances como a de Bandido Corazón, ou, quando, em uma praia carioca, se encanta com um jovem chamado Cazuza. Por mais que alguns momentos caiam na clássica armadilha das cinebiografias que é a explicação demasiada de fatos, o charme imprimido por Jesuíta ao personagem que acompanhamos por duas horas é suficiente para que cenas como a da gravação da música-título ganhem certa graça para além do óbvio. E foi bem satisfatório, enfim, ver a história dele com Cazuza nas telas, vinte anos após o filme de Sandra Werneck e Walter Carvalho sobre o cantor de “Exagerado” ter ignorado completamente a existência de Ney.
Que bonito foi assistir a Homem com H um dia depois do show histórico de Lady Gaga em Copacabana. Inevitável não pensar que esses artistas, de gerações e trajetórias tão diferentes, dividem um encantamento eterno por uma provocação que nem sempre pode cair no que é belo de forma reta. Difícil não me lembrar do show de Madonna no mesmo local ano passado e das palavras dela na ocasião e como elas também se conectam com Ney. “Talvez a coisa mais controversa que eu já fiz foi sobreviver”, ela disse, enquanto homenageava amigos como Keith Haring, artista que surge na parede em cima da cama de Ney em Homem com H. Hoje, aos 83 anos, o cantor coloca seu bloco na rua para multidões Brasil afora com o mesmo afinco do jovem que deixava até mesmo os censores sem argumentos. O brasileiro é um sobrevivente eterno de uma repressão que não deixou o país junto com a ditadura. O filme de Esmir Filho não nos deixa esquecer disso.



