Le Guin, o sonho e a utopia
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Eu vou falar de livro. Eu não queria monotematicamente discorrer sobre Ursula K. Le Guin novamente, mas não é minha culpa se ela só escreve livros maravilhosos. E minha última leitura foi A Curva do Sonho, livro que ela publicou em 1971 e que saiu no Brasil pela editora Morro Branco, com tradução de Heci Regina Candiani. O protagonista, George Orr, é um homem comum atormentado por um poder extraordinário: seus sonhos são capazes de mudar a materialidade do mundo: o que ele chama de sonhos efetivos. Mas isso não acontece da forma como talvez seria mais fácil de imaginar, que seria ele sonha e aí a realidade se altera dali para frente. Ele muda toda a linha do tempo, incluindo o passado.
E foi assim, por causa dele, que o mundo acabou em 1998, em virtude de um sonho que felizmente conseguiu desonhar. É por isso que ele fica preocupado: seus sonhos têm a potência de criação, mas também de destruição. Então dormir é um constante perigo. Ele tornou-se dependente químico no processo de evitar ao máximo dormir e foi encaminhado para um tratamento com o psiquiatra William Haber, que vê em seus sonhos a possibilidade de poder ilimitado. Nesse processo, Orr, que se sente manipulado e sem controle sobre suas criações oníricas, conhece a advogada Heather Lelache, que passa a acompanhar seu caso. Ninguém melhor que Ursula para brincar com a potência de sonhar, ela que é tão apegada à utopia, em oposição às distopias.
E se seu nome do personagem principal é uma referência a George Orwell e a autora também cita Aldous Huxley (mencionando um “admirável mundo novo” em certo momento), é fácil perceber uma forte influência de Phillip K. Dick. O autor de obras que foram adaptadas em filmes como Blade Runner (1982), Vingador do Futuro (1990) e Minority Report (2002), entre outros, escreve histórias focadas em um intenso senso de paranoia, ao ponto de que se duvida até de quem se é e da própria realidade. Mas, ainda que contemporâneos, a paranoia de Dick tem um peso da guerra fria e do macarthismo da década de 1950. Já a de Le Guin assume a virada contracultural da década de 1960, sem se deixar contaminar, ainda, pelo pessimismo da década de 1970.
A Curva do Sonho é um livro muito poético. Quase diria que não tem como não ser com esse tema, mas aí basta lembrar os sonhos metódicos e controlados criados por Nolan em A Origem (2010) para saber que não é bem assim. As descrições são muito visuais e parece um absurdo que, sendo um livro curto e sem sequências, com acontecimentos tão bem descritos, ele não tenha recebido ainda uma adaptação para o cinema com bom orçamento (apenas um telefilme de 1980 e uma versão de baixo orçamento de 2002). A autora tem um jeito muito humano de lidar com as questões que propõe, fazendo o personagem tatear por tentativa e erro suas soluções. Ela aponta o dedo para os nossos problemas e tenta propor ações sobre isso, embora Orr nem sempre dê conta de lidar com eles. Ao tentar terminar com o racismo, por exemplo, e influenciado pela lógica falha de Haber, cria uma realidade em que todo mundo é cinza. E para estabelecer a paz entre os povos terranos, cria sem querer uma invasão alienígena.
As criaturas extraterrenas, inclusive, são uma bela adição à narrativa. Nunca é possível vê-los, sempre metidos em trajes que os tornam parecidos com tartarugas. Eles são tão plácidos e com sua própria noção de tempo não-linear, que é difícil não compará-los com as criaturas de A Chegada (2016). Sua presença etérea e calma me fez imaginar que não seriam sólidos, mas sim fumaça.
Embora o livro não dedique muito tempo para aprofundar o relacionamento amoroso que se estabelece entre George e Heather, uma vez que a conexão parece rápida, emocional e intuitiva, eu senti cada vez que ele perdeu ela em mudanças de realidade. O pouco tempo é o suficiente para estabelecer e transmitir a solidez daqueles sentimentos.
“Ele não conseguia enfrentar sua dor, seu luto. Dor de sonho. A perda de uma mulher que nunca existira. Tentou saborear a comida, observar as outras pessoas. Mas a comida não tinha gosto e as pessoas eram todas cinzentas”
Ou ainda:
“No jantar, George olhou para ela; ela também o observou um pouco. Eles estavam casados havia sete meses. Não falaram nada importante. Lavaram a louça e foram para a cama. Na cama, fizeram amor. O amor não apenas fica ali, como uma pedra, ele tem que ser feito, como pão; refeito o tempo todo, feito como novo”.
A beleza está em cada palavra. Ao contrário de outros autores escrevendo naquela época, Le Guin tem um jeito de escrever que é suave e doce. Longe de mim querer essencializar isso como uma característica “feminina”, mas lendo A Teoria da Bolsa da Ficção, vê-se que isso faz todo sentido com a forma como ela enxerga narrar histórias. Apesar de o protagonista da narrativa ser um homem branco, sua força está na abstração do sonhar e não no “ser-herói” ou no brandir de símbolos fálicos, como ela aponta no ensaio.
Orr é vulnerável, mas se fortalece em se saber vulnerável. E de certa forma isso tem a ver com gênero, mas não na concepção conservadora, que resume mulheres em um “mulher” nada plural, uma entidade ahistórica, delicada e servil. E sim em como ela, enquanto autora e mulher, enxerga violência nas narrativas falocentradas (centradas em heróis e suas armas) e então propõe algo que fuja completamente dessa lógica (porque é possível sonhar). Até mesmo a homenagem a K. Dick é contrastante, nesse sentido. Se nas histórias dele tudo é metal sujo enferrujado e paranoia delirante que parece psicose, Le Guin transforma isso em medos de realidades mutáveis, sonhos e pesadelos, em um mundo em que mesmo com a tragédia parece bolha de sabão. E com isso não quero dizer que sua abordagem é tola, mas que opõe a sensação de bad trip evocada pelo texto do homenageado por uma de alteração de percepção pacífica e relaxante, ainda que não isenta de percalços e de trabalho.
Ursula consegue criar cenários que expandem a nossa noção limitada de realidade. O trecho final é tão onírico que é uma loucura tentar compor visualmente tudo que está acontecendo. O desfecho quase aberto faz sentido se pensarmos na lógica de que, no sonhar, fechar soluções é uma impossibilidade. Sonhar com respostas faz parte do processo, mas se sonha errando. A utopia é inatingível: não é um ponto de chegada, é um processo. A Curva do Sonho tem um texto lindo e emocionante que serve perfeitamente a uma exploração utópica e esperançosa de vivências possíveis. É realmente uma pena que exista tanta resistência com literatura de gênero, porque era para Ursula K. Le Guin ser considerada não uma das grandes escritoras de ficção científica, mas um das maiores escritoras da história ponto.
E como diz um simpático alienígena em certo momento:
“Há tempo. Há retornos. Ir é voltar”.