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Maxxxine (2024)

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Maxine, interpretada por Mia Goth, é a protagonista do terceiro filme da trilogia de horror escrita e dirigida por Ti West sobre o desejo de estrelato (e os perigosos escondidos nele) de suas protagonistas. As obras resultam em um conjunto um tanto estranho. Em X- A Marca da Morte (X, 2022), a atriz já vivia Maxine, uma aspirante a atriz na década de 1970 que, com um grupo de jovens, participa da filmagem de um filme pornográfico em uma fazenda isolada. Com referências a clássicos do slasher, como O Massacre da Serra Elétrica (The Texas Chain Saw Massacre, 1974), a obra mimetiza muito e cria pouco. A idosa Pearl, que mora na fazenda, também interpretada pela atriz, funciona como uma espécie de vilã em uma narrativa com um discurso duvidoso que parece informar que pessoas idosas (especialmente mulheres) que tenham desejo sexual são grotescas

O segundo filme, Pearl (2022), diverte mais, com Goth dando vida ao passado da protagonista de mesmo nome, durante a pandemia de gripe espanhola na década de 1920. A então jovem descobre o cinema e, fascinada, deseja virar atriz. Com uma narrativa realmente interessante, que emula uma estética tecnicolor para comentar sobre um mundo de fantasia projetado, sua protagonista (essa sim) está disposta a qualquer coisa para ser uma estrela. 

Agora em Maxxxine (2024), Maxine retorna anos depois do que vivenciou naquela gravação, em 1985, dessa vez em Hollywood. Uma estrela da indústria de entretenimento adulto, ela deseja protagonizar filmes fora desse mercado, afirmando já ter 33 anos e, por isso, pouco tempo ainda de sucesso. Ao mesmo tempo, um misterioso assassino está matando em série jovens mulheres pela cidade. Suas amigas e colegas de trabalho se tornam, uma a uma, vítimas dele. Todas anteriormente mencionaram que iriam em uma festa de um desconhecido em um endereço específico. (E ainda assim, uma montagem expositiva as repete em sequência falando o endereço, para o caso de alguém ter esquecido). 

Outra montagem, na abertura, mostra o contexto de pânico satânico e puritanismo nos Estados Unidos dos anos 80, incluindo o famoso depoimento de Dee Snider, da banda Twisted Sisters, no congresso, em um interrogatório sobre a má influência do rock entre menores. A ideia é que a película se apresente como um contraponto a esse conservadorismo de então. Além disso, um letreiro traz uma frase de Bette Davis: “No nosso ramo, até que você seja conhecida como um monstro, você não é uma estrela”. A frase implica que a jornada da protagonista precisa passar pela monstruosidade para que alcance seus objetivos, mas nada mais longe da realidade. 

Ti West tenta tecer diversos comentários sobre a própria indústria, especialmente o trabalho de mulheres. Uma audição logo no começo já dá pistas. Com look composto por calça jeans justa e blusa frente única também de jeans (e devo dizer que o figurino de Mari-An Ceo é um espetáculo), além de cabelo com textura amassada, Maxine passa por uma longa fila de candidatas para tentar sua chance. Jovens aspirantes intercambiáveis: quem terá o necessário para a fama? Além de saber as linhas de um monólogo (nem precisava ser de cor, poderia ler), ela precisava saber chorar e mostrar os seios. Um comentário nada sutil sobre as expectativas em relação ao trabalho de atriz. O seio em questão, revelado na diegese, nunca é mostrado à pessoa expectadora, de forma alinhada com a crítica proposta. E ela consegue o papel em A Puritana 2, uma sequência de horror dirigida por Elizabeth Bender (Elizabeth Debicki).

Logo depois, um funcionário do estúdio revela para Maxine que a cineasta seria uma espécie de megera potencialmente explosiva. As interações entre as duas mostram uma profissional rigorosa, sim, mas dentro do limite do razoável, expressando preocupação e dando conselhos quando necessário. Ou seja, um comportamento que, se fosse de um homem, provavelmente não geraria comentários desse tipo. Esses aspectos críticos à indústria ficam nesse patamar: arranham a superfície e não desembocam em nenhum tipo de desenvolvimento da trama. 

Além disso, referências são empilhadas umas sobre as outras. Um Buster Keaton assustador. A estrela na calçada da fama de Theda Bara, uma das primeiras sex symbols do cinema. Menção a um videoclipe (ficcional) da cineasta feminista real Lizzie Borden. Sangue diluído em água escorrendo pelo ralo, rodando, como em Psicose (Psycho, 1960). Corpos descobertos por um grupo de rapazes gays a caminho do túmulo da Judy Garland (e confesso que eu ri dessa). Novamente nada disso leva a lugar nenhum, para além da soma de elementos vinculados a cinefilia muito específica que a película tenta agradar. Sequer há confiança no público: em certo momento, em uma visita aos sets do estúdio, Maxine vê o Motel Bates, de Psicose, apenas para, na sequência, Elizabeth lhe explicar que aquele é o Motel Bates, de Psicose. (Vai que alguém assistindo não sabe, mesmo com o enorme letreiro neon?). 

A própria Elizabeth, com blazers cinza e cabelos loiros presos rente à cabeça, remete a uma loira de Hitchcock. Curiosa referência, já que a imagem, encarnada por diversas atrizes, evoca a ideia de uma frieza sedutora em meio ao horror, ao mesmo tempo em que suas intérpretes eram assediadas pelo cineasta. Mas, ao final, quando Maxine usa um rodado vestido dos anos 50 e cabelos cacheados, é Elizabeth quem lhe diz que parece uma loira de Hitchcock, o que, de fato, não corresponde à realidade. 

A obra brinca justamente com a noção de realismo e mentira no mundo hollywoodiano da fantasia. Tudo que vemos não é real, mas nossa percepção de diegese quer que seja. Uma cabeça cortada de uma personagem do filme é real e uma cabeça cortada de uma personagem no filme dentro do filme é mentira. Elizabeth reclama que o sangue de seu filme não está realista o suficiente, mas quando o sangue de um homem que persegue Maxine é derramado, ele é transparente e rosada: não poderia ser menos convincente. Tudo que vemos é cenário, como a casa de Norman Bates, que é apenas uma fachada, com um grande X de madeira em seu interior para marcar a protagonista. 

Elizabeth (e a essa altura fica claro que sua personagem tem a função de comentar, explicar e guiar quem assiste) comenta, sobre Psicose “ele era um homem vestido de mulher. Naquela época não estavam prontos para isso, eram puritanos”. Será que a revelação é que o assassino, de quem só vemos as luvas de couro pretas, é novamente um homem vestido de mulher? Ou, ainda, uma mulher vestida de homem? (O que é roupa de homem e de mulher?). Como o puritanismo de então se reflete no tempo presente do filme? 

Uma brincadeira metalinguística mostra Maxine lendo um roteiro e uma morte acontecendo ao mesmo tempo, conforme a descrição do texto. Mas nada disso significa nada, de novo, e o vilão apresentado é constrangedoramente caricato e excessivamente pessoal para algo que pretendia-se comentar o estrutural. 

É curioso que um dos cartazes estadunidenses tenha em destaque o slogan “ela será uma estrela não importa o que seja necessário”. Porque Maxine encarna uma quase total falta de agência. Quando muito ela reage aos estímulos ao seu redor. Talvez o slogan devesse avisar que, ao ser capaz, não necessariamente ela agirá nessa capacidade. Supostamente capaz de tudo para ser famosa, ela não faz nada e ainda assim consegue seu intento, por motivos externos a ela.

Em um filme que tenta trabalhar a relação entre sexualidade (mesmo que comoditizada) e violência, Maxine não age nem em torno do desejo nem da pulsão de morte. É uma estrela pornô cujo corpo nunca vislumbramos, uma mulher desejada que nunca vemos despertar esse desejo ou sequer desejar, ela mesma. A crítica ao puritanismo se embaralha com a crítica a um sistema objetificador e o resultado é um produto higienizado e, ironicamente, também puritano. 

Não há pele, não desejo, não há corpo. Aliás, quando há corpos, são corpos mortos, incapazes de expressar qualquer erotismo. E com isso a obra se furta de bater de frente aos discursos de censura que se propõe combater. Quando Elizabeth diz que seu filme se passa na década de 1950 porque os anos 80 ainda são como aquele período, é como se Ti West dissesse que nossos próprios anos 2020 ainda são os anos 80 e, portanto, a década de 50. Mas nada faz para provocar essa realidade, pelo contrário, aquiesce de maneira conformada. 

Por outro lado, quando se trata da violência, é um slasher que nunca faz a gente temer pela mocinha, nem desconfiar dela como possível vilã. Novamente, ela é circula confortavelmente pela trama com os acontecimentos se desenrolando em torno dela. Com isso tudo, o que Maxxxine tem a dizer? Que cinema explora mulheres? Que mulheres com poder são vistas como megeras? Que corpos de mulheres são descartados? Que desejo de fama anda de mãos dadas com violência? Tudo isso e nada. 

A película comenta o puritanismo da época sem nunca trazer um contraponto. Pelo contrário. Ela teima em esconder, em amarrar, em aceitar as limitações do próprio puritanismo. As únicas expressões de sexualidade são exploitation (uma breve cena com uma personagem em uma gravação de filme pornográfico) ou perversas (a estética pornô no fetiche de videotape das gravações de mortes das amigas de Maxine). O triplo X do título é meramente acessório.

Elizabeth novamente explica que sua película é um filme B com ideias de filme A. Queria você, Ti West. Recheado de piadas e referências, ele nunca se estrutura esteticamente para além das referências vazias. Mia Goth, embora lindíssima, não tem espaço para realmente brilhar. Pense na imagem dos créditos de Pearl, em que ela, emocionalmente desiquilibrada, segura o olhar na câmera em um sorriso perturbado e congelado, que virou gif, meme e tudo mais. Não há nada que seja esteticamente interessante nem remotamente memorável como isso. Maxxxine é um exemplo curioso de obra realizada sem uma proposta clara, cuja consequência é um filme puritano e sem catarse.

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Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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