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Meio Irmão: o cinema, a política e a poética

Essa crítica foi publicada originalmente no dia 11 de novembro de 2018 no Dossiê do Juri Abraccine da 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, do qual fiz parte.


Entre cada sessão, os encontros fugazes acompanhados de breves palavras pesarosas que escapam pelos lábios. Na convergência de pessoas, olhares se cruzam e comentários misturam as obras vistas com os acontecimentos concomitantes. Entre o dia 18 e 31 de outubro ocorreu a 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. O senso de normalidade da cinefilia é quebrado pelo mundo que chama do lado de fora do cinema. O processo eleitoral acirrado, marcado pela inverdade compartilhada em massa e por discursos e ações de violência parece não deixar o mergulho no cinema ser completo. Mas a completude pode vir do próprio filtro dos olhos que não descansam. A obra cinematográfica não se constrói só, mas nasce da interação e da vida social e é pautada nas vivências humanas, ainda que nem ficção nem documentário tenham a necessidade de abraçar a realidade. Se, enquanto sociedade, alimentamos a arte, somos da mesma forma retroalimentados por ela. No estranhamento desses dias, não deixa de ser um alento poder tirar tanto das obras apresentadas.

E nesse diálogo entre estética, ética e política, se destaca a quantidade de documentários apresentados que retratam indivíduos que superam percalços pessoais, como em Meu Nome é DanielUm Dia Para Susana e Santo Amaro era Skatista. São, por um lado, trajetórias que realmente chamam a atenção, mas por outro trata-se da individualização de processos que poderiam ser mais coletivos. E quando o são, muitas vezes são frustrados por um Estado que se ausenta, como mostrado em Vitória. Marcadores sociais da diferença se tornam centrais em outras narrativas, como Chuva é Cantoria na Aldeia dos MortosSócratesAzougue NazaréSimonal e Fabiana, desnudando a tensão que envolve micropolíticas identitárias. Filme Ensaio e Humberto Mauro exploram as poéticas da criação artísticas sob perspectivas diversas. São todos filmes que dialogam com temas que estão fervilhando nesse momento na sociedade brasileira, salientando esse processo de vai-e-vem entre audiência e autor.

Por fim, o personagem-título do documentário Filme Paisagem: Um Olhar Sobre Roberto Burle Marx afirma que preferia fazer jardins públicos, que todos pudessem usufruir, do que aqueles das casas particulares. Na utopia modernista, que o paisagista ajudou a cultivar no Brasil, essa coletividade era colocada em questão. Suas plantas também se tornavam arte e essa ideia de uma arte que possa ser usufruída por muitos, que se espalhe e se faça acessível é algo possível, mesmo que com algumas limitações, durante a Mostra e que torna a sua experiência tão única.

E temos Meio-Irmão, escrito e dirigido por Eliane Coster, que foi escolhido o vencedor não só do Prêmio Abraccine, como do Prêmio do Público de Melhor Filme Brasileiro de Ficção. Sua protagonista é Sandra (Natália Molina), uma adolescente de dezesseis anos que mora em uma grande casa na Zona Leste de São Paulo. Sua mãe desapareceu sem maiores explicações e deixa a menina desamparada e sem dinheiro. Logo fica claro que, embora seu pai, que ela sabe localizar, também não esteja presente e nem se preocupe com o seu bem-estar, é a mãe que configura o conflito na trama. O abandono paterno já é algo socialmente aceito, mas o materno causa estranhamento. Sempre fora de campo, só temos dessa mulher a ausência.

A solução encontrada pela menina é, num primeiro momento, explorar a estrutura da casa mais simples de seu meio-irmão, Jorge (Diego Avelino), para, em seguida, retomar o contato com ele, que trabalha instalando equipamentos de vigilância com seu pai. O próprio rapaz lança a câmera de seu celular de forma voyeurística sobre outro jovem por quem está interessado e, sem querer, filma uma ação violenta cometida contra ele. A fotografia de Cleisson Vidal enquadra a imagem do celular acrescentando uma camada ao olhar do próprio espectador que espreita as ações diegéticas e, em outros momentos, parada em frente aos protagonistas, parece querer retratá-los como quadros vivos, reestabelecendo esse senso de constante observação. Enquanto isso, na televisão, entre John Carpenter e Datena, fica patente que a exploração da violência dentro de uma suposta realidade pode ser pior que a ficcional.

Há um certo distanciamento entre as vidas e os corpos dos protagonistas, que se fortalecem quando próximos, mas nunca chegam a uma dividir uma intimidade maior. Poderia ser um filme de crescimento como outros tanto, explorando os amores dos adolescentes que tateiam suas novas experiências e compartilham sonhos, como o desejo de sair daquele lugar. Mas é complexificado pela questão de raça (a branquitude de Sandra em oposição à negritude de Jorge, que gera desconfiança a respeito da irmandade dos dois); gênero (a forma como, embora não distantes em idade, suas experiências são perpassadas por olhares diferentes, marcados pelas feminilidades e masculinidades) e sexualidade (ambos se interessam por garotos, mas só um deles sofre consequências por isso). Além disso, classe também tem um papel fundamental. A direção de arte de Roberto Eiti Hukai dá conta de estabelecer a distinção entre os mundos dos irmãos. Para o olhar de fora, poderiam ambos fazer parte da mesma periferia, mas essa construção garante um retrato caleidoscópico, que foge do simplista e unidimensional, mostrando que há desbalanços mesmo de forma interna à vizinhança.

A proposta de cinema realista da diretora é eventualmente quebrada por elementos do campo do fantástico, materializados em máscaras que assombram o olhar da câmera, dentro da câmera, mas esses nunca chegam a, de fato, se tornar orgânicos na narrativa proposta. Acabam por funcionar como elemento de quebra e de estranhamento, chamando atenção para a própria artificialidade com que os mecanismos de criação da imagem são acionados na composição fílmica. A direção de atores de Eliane Coster, por outro lado, se mostra acertada e explora a naturalidade de seus intérpretes, especialmente Molina, que, em seu primeiro papel, demonstra grande desenvoltura. Há uma certa crueza na estética do filme que é contrabalançada pela delicadeza com que seus protagonistas criam vida.

Nesse sentido, os jovens vivem um microcosmo muito próprio, um tempo-espaço em que os pais, mas também o Estado não está presente. Ao mesmo tempo em que pouca gente faz questão de cuidar deles, a vigilância é constante e em alguma medida ineficiente, interpretada sob um viés de pessimismo hanekeano. A periferia, de certa forma, se autogoverna e sua juventude luta para não ser engolida na rotina das grandes cidades. Os protagonistas podem ser entendidos como indivíduos que são ou como a metonímia dessa geração.

Na ficção e na realidade, a violência está posta. A resistência de Sandra e de Jorge é necessária, mas a nossa também. Meio Irmão constrói significativamente essa narrativa dentro filme, que pode ser lida para fora, fechando um ciclo de arte-sociedade. Se nos corredores da Mostra os silêncios e palavras contidas predominaram, nas salas recebemos uma arte reflexiva, questionadora, política e que nos leva a novos olhares. Parafraseando a cineasta Nadine Labaki, e agora, aonde vamos? Com o novo cenário que se descortina, não temos como saber ainda, mas certamente precisaremos fazê-lo permeados por essa estética do cotidiano que dá forças às nossas vivências políticas.

Nota: 3,5 de 5 estrelas
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Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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