Cinema,  Críticas e indicações,  Filmes

Mickey 17 (2025)

“Dizem que dão emprego para aquele rio de pessoas que segue para o norte. O presidente Donner é a favor deles. Os trabalhadores são mais descartáveis do que escravos. Eles inspiram fumaça tóxica, bebem água contaminada ou são feridos em máquinas sem proteção… Não importa. São fáceis de substituir: milhares de desempregados para cada vaga”. (A Parábola do Semeador, de Octavia E. Butler, p. 402)

Assistir Mickey 17, novo filme do cineasta coreano Bong Joon-ho, na mesma semana em que li A Parábola do Semeador, livro de Octavia Butler, foi uma confluência (e coincidência) bastante apropriada. O livro foi publicado em 1993 e reflete muitas das angústias da época, e que na verdade são cada vez mais urgentes e contemporâneas: o caos climático, as crises do capitalismo, a perda de poder de compra, a derrocada das instituições e a falta de perspectiva de qualquer futuro para os jovens. A história se inicia no ano de… 2025. Nesse momento da ficção o estado da Califórnia, nos Estados Unidos, é assolado por enormes incêndios, um aumento de mortes por sarampo em virtude da pouca cobertura vacinal, água e gasolina são bens caros e pessoas trabalham em troca de casa e comida. O presidente recém-eleito, Donner, afrouxa as leis trabalhistas, privilegiando grandes corporações.

De fato, o livro tem sido muito mencionado por captar quase que perfeitamente os acontecimentos recentes, embora alguns desse elementos não sejam centrais para a trama. Mas, como toda obra de ficção científica, ela parte de uma observação do tempo presente da sua concepção. E Butler demonstra, nesse sentido, ser não só uma testemunha de sua época, mas uma ótima analista, capaz de perceber o que se intensificaria de 1993 para cá.

E um dos elementos que mais chama atenção é o capitalismo tardio em que a mão de obra é cada vez mais precarizada e descartável, como dito na citação que abre esse texto. Essa é exatamente a premissa de Mickey 17. Adaptado do romance Mickey 7, de Edward Ashton, trata-se da história um jovem chamado Mickey Barnes (interpretado por Robert Pattinson) que, para fugir de uma dívida com agiota, se voluntaria em uma expedição organizada por um político, Kenneth Marshall (Mark Ruffalo), e sua esposa Ilfa (Toni Collette). Lá ele conhece Nasha, uma tripulante bem humorada, que trabalha como uma espécie de policial e é interpretada pela ótima Naomi Ackie.

A questão é que a viagem durará 4 anos e faz parte de um projeto de colonização de outro planeta, Niflheim. E para facilitar sua aprovação na equipe, Mickey se voluntaria para ser um descartável, uma pessoa que fará os trabalhos mais difíceis e perigosos e, em caso de morte, terá um clone seu impresso por uma impressora biológica, onde suas memórias também são novamente implantadas. Com exceção do aspecto da clonagem, é basicamente também o que descrever Butler. Dessa forma ele é usado para manutenção externa da nave e para testes de caráter eticamente duvidoso, como de gases e substâncias possivelmente nocivas. E 17 é o número do sua versão atual (Sim, Bong Joon-ho parece ter acrescentado mais 10 em relação ao livro).

A proposta de Bong é satírica e seu alvo não é único. Embora o comentário sobre os corpos trabalhadores descartáveis seja muito claro, ele aproveita para criticar a mistura entre política conservadora e religião, a violência contra corpos estrangeiros (nesse caso literalmente alienígenas), o colonialismo e a invasão de terras que não são suas. Ruffalo chega mesmo a falar do mesmo jeito pausado, obtuso e cheio de dentes de Donald Trump e às vezes sua atuação escalona para um patamar excessivo até para o exagero presente na obra. Essas misturas de temas nem sempre se articulam de forma orgânica, mas o diretor garante um tom sempre divertido.

O filme apresenta brevemente o processo de impressão orgânica: proibido no planeta Terra, ele ainda seria permitido no espaço pela necessidade de mão de obra em certas situações. É assim que somos apresentados a Mickey 17. Ele acabou de cair de um penhasco no novo planeta e um animal alienígena, que pode ser um predador, está espreitando seu corpo quebrado nas pedras de gelo. Nesse meio tempo, achando que estaria morto, seus responsáveis imprimem o Mickey 18, à partir de um caldo orgânico que recebe um implante com suas memórias. Agora são dois. Um clone do clone, um duplo, uma perturbação da ordem, e, pelas leis da expedição, ambos devem ser mortos.

O corpo fabricado é mais que um navio de Teseu. No questionamento grego original, se pergunta se um navio que passe por diversas manutenções até não ter mais nenhuma tábua original ainda é o mesmo navio. Mickey, em cada uma das suas versões, é uma réplica do corpo escaneado de Mickey 1, mas os componentes nunca foram os mesmos, são sempre uma composição orgânica nova. O que torna Mickey o Mickey são suas memórias. Mickey, portanto, é caracterizado pelo que Alison Landsberg chama de memória prostética, definidas dessa forma pela autora:

Por memórias prostéticas eu quero dizer memórias que não vêm das experiências vividas de uma pessoa em nenhum sentido estrito. Essas são memórias implantadas, e os limites incertos entre as reais e as simuladas, são frequentemente acompanhados por outra ruptura: do corpo humano, sua carne, sua autonomia subjetiva (LANDSBERG, Alison. Prosthetic Memory: Total Recall and Blade Runner. 1995, p. 175, tradução minha).

Para a autora, em se tratando de memória prostética, é a memória que possui a pessoa (e não o contrário) e não há como ter certeza sobre seu grau de realidade. Dessa forma, Mickey tem que confiar que viveu tudo se lembra a cada nova iteração (isso mesmo que essas memórias lhe tragam algum tipo de sofrimento). E assim ele lembra da morte e da agonia, ainda que cada novo corpo não guarde a sensação física da última dor vivenciada e que, na prática, esse corpo pertença ao empreendimento colonial.

Dizer que um corpo pertence a um empreendimento colonial não é algo novo nem surpreendente à luz da história humana recente e é comum na ficção científica o uso de corpos sintetizados como uma espécie de metáfora para a desumanização dessas pessoas que viram engrenagens no sistema. E embora esse seja, talvez, o tema central nesse filme que tenta abarcar tanta coisa, talvez por isso mesmo essa relação não seja muito aprofundada. De toda forma Pattinson se sai bem encarnando as diferentes versões de Mickey, mudando a postura, a voz, o falar e os trejeitos para compor cada um.

O universo constituído pela nave é muito crível e palpável. Os refeitórios, quartos, uniformes, todos são elementos detalhados que parecem realmente servir às pessoas que ali moram e trabalham por tantos anos. Bong se esmera em dar vida a esse complexo ecossistema. Pode-se dizer o mesmo sobre as simpáticas criaturas que vemos inicialmente cercando Mickey 17. Os bichinhos, com um desenho ao mesmo tempo estranho e fofo, despertam empatia e se alinham com o discurso de direito dos animais já evocado em Okja (2017). Nesse sentido, é um trabalho que dialoga mais, tanto em tema como em tom, com essa obra anterior de Bong Joon-ho e, em menor medida, com Expresso do Amanhã (2013), em detrimento a outras como Memórias de um Assassino (2003) ou Parasita (2019).

Com um espírito caótico, às vezes tentando abraçar mais do que dá conta (vez por outra ao custo de ideias um tanto quanto diluídas), Bong Joon-ho constrói uma narrativa engraçada, mas não por isso sem ser crítica, mostrando que continua incomodado com as dinâmicas opressoras do capitalismo. O elenco tem espaço para brilhar em atuações que se encaixam no tom de estranhamento levemente histriônico do filme. Com um timing certeiro para o contexto político internacional, o Mickey 17 mira e atinge tecnocracias descerebradas, que colocam a tecnologia acima da ética e deixam de lado as conexões humanas e o respeito aos demais seres.

Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *