Críticas e indicações,  Livros

Mulheres imPERFEITAS

Só na introdução de Mulheres imPERFEITAS, lançado no Brasil pela editora Cultrix, Carina Chocano me fez rever vários “desconfortos omitidos” da profissão de crítica de cinema, reafirmar meu amor pelo filme Ruby Sparks (e até pela Isla Fisher!), e perceber o quanto Alice (no País das Maravilhas) é uma das poucas, de fato, protagonistas, de histórias infantis, tão subversiva em sua desobediência ligeiramente disfarçada de psicodelia – quase um monstro de sapato boneca e vestido azul. E as referências ao livro de Carroll vão estruturar o texto e nos guiar pela toca do coelho Pernalonga de batom, e com direito a um chá maluco e biscoitos em formato de coração que nos fazem crescer e diminuir.

Como revela o slogan – ou melhor, o subtítulo do volume – Chocano discute “como Hollywood e a cultura pop construíram falsos padrões femininos no mundo moderno” à luz de grandes pensadoras como Virginia Woolf, que em meados dos anos 20 já levantava questões que ainda são pauta hoje, sem esquecer de pincelar filósofos importantes como Barthes e Foucault, para falar respectivamente sobre mito e interdito. Além de analisar a forma limitada como as mulheres são retratadas em geral na TV e pela sétima arte – “a maioria das personagens femininas ainda é reduzida a uma única característica bem evidente (a maldosa, a tonta, a romântica, a puta)…” – Carina conta sua história ao longo dos capítulos, uma viagem com exemplos de uma mulher REAL e suas conquistas e decepções, do amor ao divórcio. Ela compartilha suas pesquisas e experiências sobre maternidade passando brevemente até pelo fascinante sórdido terreno da pornografia. Ela se mistura às garotas cuja moeda de troca imposta pelo patriarcado é o que as pessoas pensam delas, e sujeitas a aspirar uma suposta feminilidade inalcançável, pois “nada é melhor para manter uma mulher em seu devido lugar do que tentar alcançar um padrão impossível”. Ela questiona preceitos sociais quase inabaláveis, como a narrativa da “escolha”, para ela perniciosa e ilusória – como se tivéssemos linhas de fuga plausíveis.

A tradução é ótima e fluida, exceto por algumas expressões consideradas de péssimo tom hoje em dia, como “olhar feminino”, “humor negro” e talvez até “doida varrida” – deslize em partes compensado pela alusão ao hit nacional “bela, recatada e do lar”. A lista dos filmes citados é muito mais extensa do que a relacionada ao final. Ela desconstrói a beleza e a bondade das princesas de animações clássicas de contos de fadas como Branca de Neve e os sete anões (1937), Cinderela (1950) e Bela Adormecida (1959), até as mais modernas como Valente (2012) e Frozen (2013). Cita a pioneira Alice Guy e comenta como as protagonistas da diretora eram mulheres fortes. Faz um passeio um tanto quanto desconfortável pelos anos 80 e seus produtos duvidosos como Flashdance (1983), com exceção de respiros como Procura-se Susan Desesperadamente (1985), até aterrizar na década seguinte com Uma linda mulher (1990) que inverte a ‘madonna’ e a prostituta e rebate a forjada jornada de autoconhecimento em Comer, rezar, amar (2010) – combo quase complô contra papéis dados à nossa querida Julinha Roberta. É reconfortante ler uma resposta à tão recente sabotagem sofrida pelo remake de Caça-Fantasmas (2014), com atrizes nos papéis principais.

A leitura abrange ainda comentários sobre alguns fenômenos televisivos, com destaque para a icônica Sex and the City e a excelente Mad Men, que agora entendo não ser uma série nostálgica, mas sim uma visão em retrospectiva, chamando atenção às confluências entre capitalismo funesto, arte e natureza humana. Tenho marcações em quase todas as páginas para futuras releituras, na ilusão esperança de que com obras como essa, quem sabe estejamos vivendo mesmo um ponto alto dos feminismos em busca de uma representação menos idealizada e mais realista, dentro e fora das telas.

Mulheres imPERFEITAS

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Doutoranda em Estudos de Linguagens pelo CEFET-MG

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