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Nazismo e perseguição a identidades LGBTQIA+ no cinema

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Tenho assistido com estupefação, como quase todo mundo, as tomadas de decisão de Donald Trump, novamente ocupando a cadeira da Casa Branca. Nem vou falar do horror que são os descalabros do Elon Musk. Mas uma das coisas que mais têm me afetado é ver as notícias sobre a perseguição de identidades transgênero pelo governo. Primeiro o secretário de Estado Marco Rubio proibiu a emissão de passaportes com identidade retificada para pessoas transgênero. Eu vi muita gente apavorada no bluesky, constatando que ou utiliza o nome morto e o gênero designado no nascimento, ou está virtualmente presa no país. 

Depois. em 31/01, o Departamento de Estado também removeu de seu site as recomendações para viajantes LGBTQIA+. Aliás, na verdade, as manteve no ar usando apenas a sigla LGB. Transgênero, queer, intersexo e asexual e demais identidades foram sumariamente apagadas. Outros setores do governo seguiram o exemplo de forma similar. Dia 05/02, por exemplo, funcionários da NASA foram instruídos a deixar todas as atividades em segundo plano em detrimento de um pente fino no site: todas as menções a mulheres em posições de liderança, bem como a povos indígenas, estão sendo apagadas. Os termos banidos também incluem: Diversidade, Equidade, Inclusão e Acessibilidade (DEIA); instituição que atende minorias; povos indígenas; justiça ambiental; grupos/pessoas sub-representados; qualquer coisa que vise especificamente mulheres (mulheres em liderança, etc.). 

Por fim, a CDC (Centros de Controle e Prevenção de Doenças, agência relacionada à saúde pública nos EUA) decretou retratação em massa e revisão de pesquisas enviadas em todos os periódicos científicos, para que certos termos não sejam mais utilizados. A lista de palavras banidas de pesquisas científicas inclui “gênero, transgênero, pessoa grávida, LGBT, transexual, não-binário, designado ao nascimento” entre outras. Essa medida visa “corrigir” artigos já publicados e só publicar daqui para frente aqueles que já estejam adequados. Estamos falando de palavras banidas em um país que se considera democrático, veja só. Como uma espécie de novilíngua em que se suprime existências por meio do apagamento textual: é a própria negação da materialidade dessas pessoas, que não podem sequer ser mencionadas.

Com o perdão da Lei de Godwin, cometi esse post sobre o assunto:

E não é nem exagero: no começo do século XX, Berlim era um centro urbano em que as pessoas podiam viver com liberdade e o primeiro grande alvo dos nazistas depois de sua ascensão foram os estudos de gênero e sexualidade e as pessoas com identidades não-normativas nesse sentido. Sempre se fala sobre como eles queimaram livros, mas pouco se fala que isso começou com o fechamento do Instituto de Sexologia (Institut für Sexualwissenschaft), em 1933, e a destruição de sua biblioteca. Trazendo o tema para o cinema, listo algumas dicas de filmes sobre a questão do nazismo e perseguição a minorias de gênero e de sexualidade.

A primeira é o filme Senhoritas em Uniforme (Mädchen in Uniform), dirigido por Leontine Sagan e lançado em 1931. Ele conta a história de uma estudante de internato para moças que se apaixona pela professora. Fez relativo sucesso internacional quando foi lançado, mas depois foi banido pelos nazistas, que tentaram queimar as cópias existentes. Felizmente já haviam rolos de filme dispersos pelo mundo. Esse representa bem o impacto imediato na arte de então. Temos um programa sobre ele. O filme está disponível na Mubi.

O segundo, também ficcional, é Cabaret (1971), musical dirigido por Bob Fosse e estrelado pela hipnótica Liza Minnelli. Ele retrata o relacionamento entre uma cantora estadunidense, um professor britânico e um nobre alemão. Aborda de maneira sutil, mas não por isso menos aterradora, os avanços do nazismo, alegoricamamente representados na influência sobre o ambiente festivo do Cabaré Kit Kat, onde a protagonista trabalha. É uma boa ficcionalização posterior das ameaças do regime. 

Entrando no âmbito dos documentários, a primeira indicação é Paragraph 175 (2000), dirigido por Rob Epstein e Jeffrey Friedman, que também foram responsáveis pelo clássico The Celluloid Closet (1995). Ele fala, por meio de histórias de sobreviventes, sobre as consequências da lei alemã de mesmo nome, que tornava ilegal a homossexualidade. Entre prisão, trabalho forçado e campos de concentração, onde pessoas presas recebiam um triângulo rosa em seus uniformes para marcá-las, o filme mostra o tratamento conferido a homens e mulheres que eram considerados criminosos em virtude de suas identidades. 

O segundo é Cabaré Eldorado – O Alvo dos Nazistas (Eldorado: Everything the Nazis Hate, 2023), de Benjamin Cantu. O título dá a entender que o filme vai focar em um dos muitos cafés e cabarés voltados para o público LGBTQIA+ na Berlim dos anos 20 e 30: o Eldorado. Mas na verdade, ele usa esse espaço como ponto de partida para trazer a vida pessoal de algumas das pessoas que frequentavam o lugar, entre homens gays, mulheres sáficas e pessoas trans. Esses relatos são pontuados por fotos e filmagens da época que são lindíssimas, e ilustram vidas pessoais que de fato existiram. Por outro lado, as recriações encenadas são constrangedoras: figurinos que parecem fantasias, exageros e afetações com não condizem com o tema, mesmo que a proposta fosse ser celebratória. De qualquer forma, por meio dessas personagens escolhidas, cria-se uma espécie de linha do tempo que mostra as mudanças sociais e legais em torno do que era considerado gêneros e sexualidades dissidentes. Dados históricos importantes são trazidos, como o fato de que, com o fim da Segunda Guerra Mundial e a liberação dos campos de concentração, pouco se falou sobre esses sobreviventes, uma vez que sequer as pessoas historiadoras se preocuparam em saber suas histórias. Isso porque o Parágrafo 175 continuou vigente na Alemanha Ocidental e só foi revogado em 1994. É estarrecedor. O filme está disponível na Netflix. 

Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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