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Oppenheimer

Os vícios do cinema de Christopher Nolan são bem conhecidos entre seus amantes e seus detratores ( e eu não me considero nem dentro do primeiro nem do segundo grupo: minhas reações a seus filmes são bastante variadas). Do hábito de incluir mulheres mortas como motivação para seus heróis ao roteiro e montagem quebra-cabeça, que complexificam o que poderia ser linear na narrativa, está tudo aqui em Oppenheimer (2023). E o resultado final, para mim, foi bastante satisfatório.

O cineasta britânico toma pra si a hercúlea tarefa de contar a trajetória do físico teórico J. Robert Oppenheimer, responsável por liderar a equipe que desenvolveu a bomba atômica, usada pelos Estados Unidos contra o Japão, causando centenas de milhares de mortes. Começando com seu passado como estudante da Europa, o filme embaralha duas linhas do tempo: uma, filmada em cores, com sua perspectiva dos fatos que viveu e outra, em preto e branco, mostrando desdobramentos de suas ações no pós-guerra.

Com três atos bem definidos, o filme aborda a ascensão do jovem cientista até sua nomeação como responsável pelo projeto Manhattan no primeiro, o desenvolvimento da bomba no segundo e o que acontece depois de tudo isso no terceiro. O protagonista, interpretado por Cillian Murphy, é apresentado como uma figura não só divisiva, mas dividida. Sua dedicação inicial à teoria cria um retrato de um homem de poucos amigos, apegado às suas fórmulas mas com dificuldade de relacioná-las com a vida real e de entender suas consequências materiais.

Mas quando a ciência passa a servir a política, ele admite que entende seus desdobramentos. E devo dizer que a política presente na narrativa é mais complexa do que se esperaria do diretor que dez anos atrás colocou o Occupy Wall Street de maneira desleixada no seu Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge (2012). Oppenheimer é um homem judeu que sabe que é aceito em certos espaços por suas contribuições acadêmicas, mas que pode ser descartado quando não for mais necessário. Que deseja parar um império que tem em sua base, entre outras formas de perseguição, o antissemitismo. Mas que também tem consciência de que uma vez que sua invenção esteja pronta e funcionando, ela pode ser usada de qualquer forma em qualquer povo, resultando em genocídio (o que de fato aconteceu). Então ele se mostra reticente sobre o próprio invento assim que ele é usado.

E é aí que possível ver o diretor negociando o personagem com mais afinco: o cinema como propaganda, tentando convencer as pessoas espectadoras de que é um herói digno do interesse (o que de fato é), ao mesmo tempo que admite que ele é complicado demais pra abraçar completamente. O interesse não implica necessariamente em defesa: entender uma fração de suas motivações não o exime do peso de suas escolhas, apesar do diretor parecer querer que ele seja absolvido por elas.

Murphy, recorrente na filmografia de Nolan, talvez seja o maior destaque do filme. Ele exprime com solenidade toda a angústia e todas dúvidas que perpassam o personagem, olhando diretamente para nós, com seus enormes olhos cristalinos. O figurino minimalista de Ellen Mirojnick contribue para a composição do peso do personagem, mas é a fotografia de Hoyte Van Hoytema que potencializa as atuações, em closes que destacam os poros, rugas e contornos de cada rosto. Trata-se de um filme de assombros, expressos nos olhares. As atrizes, Florence Pugh no papel da namorada de Oppenheimer, a militante comunista Jean Tatlock, e Emily Blunt como sua esposa, infelizmente não tem tanto espaço para mostrar seu trabalho.

A mixagem de som é espetacular, e falo isso como uma pessoa que sempre é mais visual que auditiva. A trilha de Ludwig Göransson cresce com o avançar da narrativa, cada vez mais incômoda, entremeada por ruídos que adicionam sentidos, como, quando uma bomba nuclear é disparada em teste, conseguimos ouvir pessoas gritando ao fundo na detonação.

A montagem de Jennifer Lame também intensificam a cacofonia de pensamentos que passam pela mente do protagonista. Em certa momento, ele relata o suposto suicídio de sua namorada, e fala que ela tomou comprimidos que tinha prescrição, mas em seu sangue foram encontradas outras substâncias. Ele, que sabia das ações do governo no sentido de espionar seus cidadãos quando esses eram comunistas (ou suspeitos de ser), visualiza uma mão enluvada, que pisca, em meio a cena, ao lado dela, como uma sombra de suspeita sobre a causa real da morte. O resultado dessa combinação de elementos colabora para a criação de uma obra intensa e perturbadora.

Em termos imagéticos, chama a atenção como Nolan compõe imagens de ondas e partículas para dar vazão às ideias de Oppenheimer. Às vezes parece que que artistas (e pessoas que trabalham com ciências humanas) têm dificuldade em expressar (ou mesmo entender) as ciências exatas. No cinema, que precisa tanto da imagem, isso se escancara. Basta pensar em Uma Mente Brilhante (2001) ou mesmo O Jogo da Imitação (2014), sem entrar no mérito da qualidade dos filmes e em como tentam comunicar os cálculos e programações. Aqui, Nolan consegue de forma elegante criar uma abstração visual que traduza a complexidade das ideias que não conseguimos abarcar. Isso sem falar no espetáculo de beleza e tragédia que é a detonação do teste Trinity: o maior avanço da física possível conjugado em uma esfera de matar que ilumina de dourado o rosto de seus criadores, enquanto despeja no ar seu cogumelo radioativo.

Mas talvez a ideia mais abstrata e mais difícil de expressar seja a política. Oppenheimer, rodeado por pessoas comunistas, era um liberal que nutria um interesse teórico no conceito. E aí voltamos para a difícil tarefa do filme em abordar a complexidade da figura. Como se envolver em uma missão genocida querendo deter o genocídio? Como lutar contra o antissemitismo amando uma nação antissemita? Como combater o imperialismo defendendo os interesses de um país imperialista? Em pleno macarthismo, os Estados Unidos demitiram seus cientistas comunistas para contratar os nazistas que debandaram da Alemanha. Ou seja, o nazismo nunca foi um problema real para o poder estadunidense: o avanço imperialista é que sim. E o personagem título parece entender todos esses aspectos e, ainda assim, se isentar de posicionamento, como as falas de alguns personagens deixam claras.

De toda forma, entre o vai e vem ideológico em que o personagem é enredado, Nolan parece dar conta suficientemente bem dessa complexidade política. Ele só não consegue, obviamente, redimir e justificar todas as suas escolhas, como parece querer, o que seria impossível. Mas é no espetáculo audiovisual que o filme acerta sem concessões. Com suas três horas de duração, Oppenheimer é uma construção narrativa complexa, que nem sempre dá conta de abarcar ou de prover toda a complexidade possível ao que se propõe fazer, mas que, enquanto cinema, é um espetáculo ao mesmo tempo grandioso e minimalista que não deixa de ser interessante de assistir.

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Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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