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Os 39 degraus

Texto publicado originalmente na newsletter para assinantes do financiamento coletivo do Feito por Elas. Para contribuir, assine aqui.


Esses dias a newsletter da Aline Valek veio com o título O tempo andou mexendo com a gente. Ela escreveu uma série de reflexões sobre as diferenças entre gerações, agora tão na moda de serem apontadas que cada uma ganha até mesmo um nome diferente. E também sobre a passagem do tempo e envelhecer. Sua carta veio em boa hora, encaixou direitinho com coisas que tenho pensando. Uma das que ela comenta é como, de fato, cada geração está sempre condenando a anterior. Ela traz uma citação que comenta a decepção com os jovens:

“Os jovens indomáveis de hoje não estão perdidos. Para esta geração falta o ar eloquente de perda que fez tantas façanhas da Geração Perdida virarem símbolos. Além disso, a coleção de ideais destroçados e os lamentos sobre a lama moral vigente, que tanto deixaram a Geração Perdida obcecada, não preocupam a juventude de hoje em dia. Eles tomam essas coisas como dadas de uma forma assustadora. Eles chegaram em meio a essas ruínas e não as notam mais. Eles bebem para ‘cair’ ou para ‘chapar’, não para ilustrar o que quer que seja”.

Esse trecho, traduzido por ela, teria sido escrito John Clellon Holmes no New York Times… em 1952.

Lembro que quando estava na graduação li alguma obra do historiador Jacques Le Goff (acho que foi Por Amor às Cidades, mas não tenho certeza) e ele trazia vários escritos de pessoas que moravam em cidades com universidades ali nos 1300, 1400 e eles já reclamavam que universidade era baderna, que os jovens eram barulhentos, festeiros e que não deixavam o resto da população ter paz. É sempre assim, há séculos. Enfim, o jovem nunca está certo. E por muito tempo eu estive nessa categoria e fui essa figura. Segundo minha família, “a do contra”. O tempo foi passando. E por muito tempo eu estive nessa categoria e fui essa figura. Segundo minha família, “a do contra”. O tempo foi passando.

Aline escreveu em sua newsletter “Observo em mim o processo de perder colágeno e as certezas”. Por aqui, o colágeno já foi com deus (e nem sempre estou de boa com a questão da autoimagem, mas essa é outra reflexão), mas os posicionamentos seguem mais ou menos os mesmos daqueles que anos atrás incomodavam meus pais.

Só que nos últimos tempos eu já não consigo mais me incluir entre “os jovens” e acho que esse lugar nem me cabe mais. Não lembro em que momento parei de dizer “nós” e comecei a dizer “eles”. Sempre falei para todas as amigas perto de completar 30 anos “bem vinda, os 30 são incríveis!”. Muita coisa na minha vida mudou (para melhor) na passagem dos 20 para os 30. Vivi coisas incríveis, tendo mais experiência e maturidade, e fiz valer. Agora, de repente, a 2 meses e pouco de completar 39, e daí já arredondando para 40, estou me encontrando numa certa crise que eu não tive na década passada. Talvez porque os 30 chegaram para mim com uma série de planos e possibilidades, de fazer coisas que não consegui aos 20. E os 40 se aproximam com uma grande incerteza.

Esses dia falei para um amiga “o doutorado me roubou a saúde e a juventude”. “Juventude?”, ela respondeu (juro que sem maldade). Pois é, eu entrei em 2017, faltando um mês para completar 32 anos. Jovem. E terminei agora, anos depois com um checklist de especialidades médicas que preciso conferir, me sentindo muito, muito cansada (especialmente com os trabalhos paralelos) e… não mais jovem. Acho que o fim dessa (longa, longuíssima) jornada está impactando as minhas dúvidas. Talvez eu não saiba mais direito quem eu sou e o que eu quero, como aos 30. Essa deve ser a parte das certezas abalada de que Aline fala.

E aí eu coloco na perspectiva histórica. Quando minha mãe tinha 38 anos ela me disse que não seria avó com essa idade. Fiquei olhando para ela sem entender e ela explicou que minha avó e minha bisavó ambas foram avós por volta dos 38 anos. Minha bisa teve a primeira filha aos 21. Minha vó, que foi sua terceira filha, mas a primeira delas a ter filhos, teve minha mãe, a mais velha, aos 17. 38. Minha mãe me teve, também a mais velha, aos 22. 39 recém completos. Quando minha mãe tinha 38, portanto, eu tinha 16. Hoje não sou sequer mãe (outro tema que não é para agora), então a ideia de ser vó aos 38 parece quase uma loucura. 

Minha vó, aos 39, e eu. A outra criança é meu tio <3

Mas talvez não fosse algo tão extraordinário até pouco tempo atrás. Essa semana assisti a O Pai da Noiva (Father of the Bride, 1950), do Vincente Minnelli. Eu só tinha visto o remake dos anos 90 com o Steve Martin. E lá está Elizabeth Taylor aos 18 anos interpretando uma moça de 20 que vai se casar. Quando o pai (Spencer Tracy) fala para a mãe (Joan Bennett) que ela é só uma criança, ela rebate, dizendo que quando eles se casaram, ela tinha apenas 18 anos, ou seja, era ainda mais jovem. Agora tinha 38, portanto. (Joan Bennett, inclusive, tinha 40 anos quando lançou esse filme e até 3 anos antes interpretava femme fatales nos noir de Fritz Lang). Pula para o filme seguinte, O Netinho do Papai (Father’s Little Dividend, 1951), também do Minnelli, em que, um ano depois, Taylor está tendo seu primeiro filho, tornando a personagem de Bennett avó aos 39 anos. Mas se ser vó aos 38 ou 39 hoje parece algo no campo do fantástico, por outro lado, ser não mais jovem (e não ter filhos) nessa mesma idade parece que nos deixa meio que num estranho espaço de transição. Será que é permanente?

Joan Bennett aos 35 anos como a memorável femme fatale de Almas Perversas (Scarlet Street, 1945) e aos 40 como mãe da noiva em O Pai da Noiva. 

Por outro lado, talvez a aproximação dos 40 traga um tipo de liberdade ainda maior que os 30. No Grupo de Leitura Feito por Elas lemos A Ridícula Ideia de Nunca Mais Te Ver, de Rosa Montero. Ela, que perdeu seu companheiro, com quem dividiu a vida por 21 anos, divaga sobre o luto tendo como base o diário que Marie Curie escreveu por ocasião da morte de Pierre. E, claro, dessa forma, entrelaçando histórias e trajetórias, ela acaba refletindo, também, sobre a passagem do tempo. E quando fala sobre como era quando jovem feminista, ela relata suas próprias cobrança enquanto escritora. Escreve:

“Cheguei inclusive a esconder durante décadas meu lado mais imaginativo e priorizei a lógica, pois as discussões intelectuais e racionais eram um campo masculino, o território de combate onde se ganhava respeito do outro, enquanto a fantasia era mera tolice de mulher. Por isso meus primeiros romances são todos realistas, e só pude começar a me libertar dessa repressão ou mutilação mental com meu quinto livro, Temblor [Tremor], um romance de ficção científica publicado em 1990, ou seja, quando eu já havia chegado à mais do que respeitável idade de 39 anos. Levei todo esse tempo para começar a trazer à luz meu lado fantástico, aquela menina imaginativa que eu mantivera prisioneira sob sete chaves dentro de mim”. 

Achei interessante que até os 39 ela pensava que precisasse ser realista, que não poderia ser criativa. Eu jamais pensei isso, embora eu tivesse minhas particularidades para lidar com as (auto) cobranças de gênero também. Adolescente, escrevendo poesia, dizia que eu era poeta, não poetisa, “porque poesia não tem gênero”. (Ainda bem que naquela época não existia redes sociais). Aos 24, 25, na minha encarnação passada como arquiteta, tinha dificuldade de projetar uma imagem profissional, especialmente lidando com homens mais velhos e experientes no canteiro de obras. Quando dei aula de Antropologia no curso de Design da UFAM, como estágio de docência no mestrado, também me esforçava para parecer mais velha, já que meus alunos eram poucos anos mais novos que eu. 

E aí, aos 38, semana passada, eu comprei um all star. Meu primeiro em 15 anos. Como falei no Grupo de Leitura, talvez porque a essa altura eu sou uma “senhora” e não preciso mais me preocupar em parecer mais velha (eu já sou/estou mais velha). Esse all star é meio que minha ficção científica: um começo para eu me soltar daquilo que me cobrei nos anos anteriores, minha possibilidade de expressar criatividade pelo vestir. Inclusive quem convive comigo não deve mais aguentar me ouvir falar de coloração pessoal desde que fiz minha análise cromática. Me descobri uma pessoa de cartela “outono suave” e estou adorando buscar outras formas de me apresentar e representar. Pode parecer besteira, mas hoje percebo que passei anos da minha vida vestindo preto, coturno e afins também como uma armadura, que projetava uma imagem muito mais dura (e séria) do que sou de verdade. Agora me encontrar na suavidade tem sido bom, seja num tênis recém adquirido, seja numa blusinha rosa ou verde. Não tenho respostas nem certezas e sigo sem saber como vão ser os próximos anos. Mas, mesmo com crises, que venha um futuro mais jovial aos (quase) 40.

Um all star que é minha ficção científica

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Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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