Cinema,  Críticas e indicações,  Filmes

Pacto de Sangue, a femme fatale e a ambiguidade moral

Texto publicado originalmente na newsletter para assinantes do financiamento coletivo do Feito por Elas. Para contribuir, assine aqui.


Esses tempos eu revi Se Meu Apartamento Falasse (The Apartment, 1960), do Billy Wilder no cinema. E que filme perfeito, cada vez mais! Para meu último curso, Mulheres Protagonistas na Era de Ouro de Hollywood, acabei revendo também Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard, 1950) e Pacto de Sangue (Double Indemnity, 1944), ambos também do diretor e esse último, segundo o letterboxd, não via há quase 10 anos. E nas últimas semanas revi, ainda, Testemunha de Acusação (Witness for the Prosecution, 1957), que considero a melhor adaptação de Agatha Christie já feita. Dizer que Wilder é um gênio é chover no molhado. Mas depois de ter assistido a tantos filmes noir nos últimos anos, me chamou atenção o tanto que Pacto de Sangue é o protótipo perfeito do gênero. A narração em voz over, a estrutura em flashback relatando um crime do passado, as persianas filtrando a luz que entra no cômodo, a neblina, o homem com o próprio código de honra e moralidade ferido, a mulher fatal. 

Barbara Stanwyck interpreta Phyllis, uma mulher que tenta contratar um seguro de vida que paga em dobro para certas mortes raras (referido no título original), Mas o seguro não é para ela: é para seu marido, a quem pretende matar de uma forma que pareça um acidente. Para isso, precisa da ajuda de um agente de seguros, Walter, interpretado por Fred MacMurray. Quando Phyllis aparece pela primeira vez, descendo lentamente uma escada, os olhos dele e os nossos não desgrudam de sua imagem. Sentada displicentemente em uma poltrona, enquanto tira dúvidas com Walter, sua perna em diagonal exibe o sapato de bico amêndoa, com salto médio, adornado com um pompom, além de uma tornozeleira delicada, que não escapa ao olhar do co-protagonista, como uma provocação sutilmente erótica. 
Stanwyck, vinda de filmes pré-código como Serpente de Luxo (Baby Face, 1933), é perfeita encarnando a confiança e o certo desdém que Phyllis emana. Para que Walter a ajude em seu intento, ela precisa ser atraente, mas ao mesmo tempo parecer inacessível, de forma que ele se sinta lisonjeado com a abertura que receber dela. Escreveu Jeanine Basinger: 

“Barbara Stanwyck em Double Indemnity é o enigma compreendido. Ela é misteriosa, sedutora, possivelmente má, mas de uma forma que o público conhece. Ela é colocada no quadro como todas as femmes fatales são colocadas lá, fotografada como uma mulher sexualmente excitante com uma pulseira no tornozelo, piscando para sua vítima infortuna, Fred MacMurray, enquanto ele tenta vender-lhe um seguro”.
(BASINGER, Jeanine- A Woman’s View: How Hollywood Spoke to Women 1930-1960, tradução minha)

Como toda femme fatale, Phyllis é uma fantasia masculina, em um mundo masculino, onde sexo é uma arma. É aquilo que Molly Haskell, em seu livro From Reverence to Rape: The Treatment of Women in the Movies, chamou de “uma sombra de ambiguidade moral”. E como os bons ventos do cinema pré-código há muito deixaram de soprar, ela é punida exemplarmente pelo próprio amante, por ousar trilhar caminhos criminosos em busca de autonomia. O que na década de 1930 era uma excitante e divertida brincadeira de provocação, na década de 1940 ganha contornos inegavelmente sinistros, moldados pelo pessimismo do zeitgeist. Ainda assim é um prazer observar e absorver Phyllis. E não por acaso. O prazer é projetado com precisão pelo mestre na direção e pela atriz encarnando a provocação. Stanwyck brilha.  

(Nesse momento o filme está disponível para streaming no À La Carte)

Imagem: reprodução
Compartilhe
Share

Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *