Cinema,  Críticas e indicações

Shazam! (2019)

Mais um filme de super-herói nos cinemas. Imagino que pouca gente dê conta de se manter em dia com todos, especialmente em virtude da semelhança na estrutura de roteiro, que acaba por tornar enfadonhos tantos deles. Mas no meio desse mar de filmes iguais, sempre tem um outro que optam por fugir dos moldes, um pouco que seja. Considero que Shazam seja um desses casos. Enquanto tantos têm apostado na seriedade (e não que seja um problema, eu mesma gosto muito do peso apresentado em Vingadores: Guerra Infinita) Shazam chega para nos lembrar que esses personagens nasceram gibis. Gibis esses que eram escritos para crianças, por mais que gerações cresceram e agora os defendam como entretenimento para adultos também. Por isso não é problema abraçar o lado tolo dessas histórias.

Com roteiro de Henry Gayden e direção de David F. Sandberg, Shazam é um filme que assume o ridículo de seu material de origem. Billy Bateson (Asher Angel), um menino órfão que vive fugindo de lares adotivos e abrigos em busca de sua mãe, encontra com um o Mago Shazam (Djimon Hounsou). Esse personagem, que é pouco mais do que um rascunho de um “negro mágico“, lhe confere poderes especiais, incluindo a capacidade de aparecer no que é chamado de “a sua melhor versão”, que seria o herói do título (Zachary Levi). O mago invoca deuses da mitologia grega, de onde obtém forças para dominar e derrotar os Sete Pecados Capitais da mitologia cristã. Nada faz sentido, mas pouco importa.

Zachary Levi tem um ótimo timing para humor, que já era bem aproveitado no seriado Chuck. Sua interpretação de uma criança presa em um corpo de adultos é ótima (incluindo aí a breve referência ao filme Quero Ser Grande, de Penny Marshall), e o roteiro ajuda com bons momentos em que pode usar caras e bocas para mostrar o misto de falta de entendimento e de maravilhamento diante de seus novos poderes. O vilão, por sua vez, surge da masculinidade tóxica. Quando criança Dr. Sivana (Mark Strong) ouviu de seu pai que deveria “ser um homem” e os contantes abusos verbais nesse sentido acabaram levando-o para o local de vilania. Além disso, tenho certeza que se eu mesma fosse uma criança hoje, teria medo da aparência de seus monstros-pecados, que, por algum motivo, me lembraram do vilão de O Rapto do Menino Dourado.

A noção de família, portanto, é importante para essa história, cujo público alvo parece ser justamente o de crianças. Não só o vilão é definido pela relação com sua própria, mas também a trajetória de Billy é marcada pela descoberta do pertencimento. Quando é levado para seu derradeiro lar adotivo, há um presépio em frente a casa, já indicando que aquela família representada nas estátuas faz parte das crenças do lugar, mas que também família é o que faz aquela casa com pessoas tão diferentes entre si se tornar um lar. Adotado por Rosa (Marta Milans) e Victor Vasquez (Cooper Andrews), Billy passa a ter como irmãos Freddy Freeman (Jack Dylan Grazer), Mary Bromfield (Grace Fulton), Darla Dudley (Faithe Herman), Eugene Choi (Ian Chen) e Pedro Peña (Jovan Armand). Cada um de seus novos irmãos acaba por ocupar um papel específico, não só no que tange a representatividade (o menino branco com deficiência, a menina branca, a menina negra, o menino asiático estereotipicamente especialista em tecnologia e o menino latino e gordo) como na própria vida, rotina e afeto do protagonista. Há um certo conservadorismo na forma como a noção de família é entabulada, que tenta se equilibrar com essa noção de diversidade apresentada. A amizade e a interação entre as crianças ajuda a dar leveza para a história.

Esse conservadorismo transparece no desnecessário reencontro do garoto com sua mãe biológica, que explica que engravidou aos dezessete anos. Ao invés de ser ressaltada a falta de apoio da sociedade a uma jovem abandonada grávida e sem condições, ela é considerada culpada pela própria situação, punida no presente com uma vida de violência e pelo próprio Billy como uma pessoa sem norte. Ele se estende, ainda, para a própria noção de que, entre todas as possibilidades de pessoas para assumir o poder de Shazam, o garoto branco é (como costuma ser nessas histórias) o Escolhido. E mesmo quando os demais passam a compartilhar de seus poderes e assumem o que é dito ser sua melhor versão, a menina negra tem os cabelos alisados, o menino gordo fica magro e forte e o menino com deficiência deixa de precisar de suas muletas. Precisaram se adequar a padrões racistas, gordofóbicos e capacitistas para ser o seu melhor? Não poderiam ser perfeitos exatamente como são?

Apesar do terceiro ato um pouco cansativo, com sua sequência de lutas, e dos aspectos mencionados acima, Shazam tem um humor tolo e às vezes inocente, mas sem perder a esperteza e acidez de crianças e adolescentes com a idade dos protagonistas. E com isso é capaz de arrancar boas gargalhadas de quem assiste a ele. Com um certo grau de bobeira, é um grande frescor e também um alívio poder se divertir assim com um filme baseado em personagem de gibi. Resta saber como ele vai se encaixar na lógica do universo DC adaptado para o cinema.

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Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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