
Um Outro Francisco (2022)
Em Um Outro Francisco, de Margarita Hernández, dois fotógrafos italianos, Giorgio Negro e Dario de Dominicis, resolvem visitar uma festa de São Francisco em Canindé, uma pequena cidade do interior do Ceará, considerada a segunda maior celebração dedicada ao santo do mundo. E aí retornam algumas vezes em anos posteriores, não só fazendo novos registros, mas também apresentando para as pessoas retratadas aqueles realizados no passado.
O documentário, sensível, traz discussões caras à antropologia visual, como, por exemplo o direito de “roubar” imagens: um fotógrafo brasileiro questiona a ética de fotografar um modelo incauto, como por exemplo uma pessoa que não perceba que esteja sendo fotografada. Já os europeus parecem não ter problema com isso e um deles chega, mesmo, a dizer, que só pararia se a pessoa se incomodasse. (E em certo momento é mostrado eles tirando foto de um senhor dormindo em uma cadeira na rua). Na fotografia artística roubar fotos é fato corrente, na foto etnográfica é eticamente questionável. Essas diferenças, em menor escala, também vêm à tona nos encontros com fotógrafos locais profissionais e amadores, que discutem técnicas, cores (e sua ausência), como sobreviver de fotografia, a chegada do digital e as preferências do público. As pessoas que se vêm nas fotos dos estrangeiros estranham as escolhas de retratar e nem sempre reconhecem nas imagens.
Além disso, o enquadramento do olhar é colocado em xeque. As solenes fotos em preto e branco são consideradas bonitas por alguns moradores locais, mas tristes e distantes da realidade alegre dos festejos por outros. Isso mostra o questionamento da “verdade fotográfica”, a noção errônea de que, por captar a materialidade presente no local, a foto seria algum tipo de documento e não uma expressão editada de percepção de quem fotografa.
O registo da fé dá espaço para a diversidade de manifestações e a expressão sincrética e palpável da cultura brasileira. O contraste entre os ritos silenciosos praticados na cidade natal do santo em Assis, narrado por um religioso brasileiro, é considerável em relação à movimentação e ao volume de pessoas que se aglomeram nas ruas de Canindé. A devoção aos animais é oposta ao sacrifício em certo momento. Além disso, o filme destaca a disposição do corpo como um lugar afetado pela ideia de milagre, um corpo composto pela cura e revelado como prova, em planos que acentuem justamente seu valor miraculoso.
O olhar estrangeiro, marcado pela alteridade, se abre para esse estranhamento. Há um desencontro entre expectativas de artistas e modelos que desconcerta, mas interessa. Um Outro Francisco elabora ao longo de anos esse encontro entre dois mundos, diferentes fés, múltiplas visões, e um olhar sobre o olhar da câmera que divaga com maturidade sobre o poder de construir imagens.



