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Furiosa (2024)

Quando Mad Max: Estrada da Fúria (Mad Max: Fury Road, 2015) estreou, eu sabia que estava testemunhando algo único. Quase dez anos depois, nunca consegui externar em palavras todo o amor que senti pelo filme, que rapidamente tomou um posto entre meus preferidos da década e de lá nunca mais saiu. A narrativa frenética, estruturada em torno de uma grande corrida com ação (quase) ininterrupta, que por sua vez se divide em duas metades (ida e volta no mesmo trajeto), entrega intensidade sem precisar tirar tempo para contextualizar a história de suas protagonistas. E funciona de maneira fechada em si: não aparenta precisar de complementos para a compreensão de seus acontecimentos e suas personagens. Elas existem ali, suas dores são subentendidas e suas necessidades são imediatas. Por isso, quando o prequel Furiosa: Uma Saga Mad Max (Furiosa: A Max Saga, 2024) foi anunciado fiquei descrente: qual a necessidade de nos apresentar algo que até então não fez falta alguma? Bom, mas o tempo ensina a não duvidar de George Miller. (Lembra da descrença generalizada com Estrada da Fúria nos anos que antecederam seu lançamento?). Furiosa veio a público, existe, e em existindo estabelece-se de outra maneira, que, afinal, complementa o filme original.

Novamente a protagonista é Furiosa, mas dessa vez acompanhamos ela desde sua infância (interpretada pela ótima Alyla Browne) no Lugar Verde: um vale paradisíaco e matriarcal, com paisagens marcadas por usinas eólicas, pomares e enormes hortas plantadas em canteiros elevados. Há fartura e harmonia. A trajetória da criança para se tornar a heroína trágica do filme anterior começa quando ela é capturada por motoqueiros da gangue do Senhor da Guerra Dr. Dementus (Chris Hemsworth). Ela sabe que não pode revelar o segredo da localização de seu lar e precisa garantir, com seus parcos recursos, que nenhum de seus captores possa contar. Só que ela não está só: sua mãe, Mary (Charlee Fraser) a segue para tentar resgatá-la e garantir sua segurança. Mas ela mesma acaba sendo capturada e morta, acontecimento que havia sido mencionado em Estrada da Fúria.

Esse evento marca a personagem indelevelmente. Além da vontade de voltar para casa, que vemos ser frustrado no outro filme, Furiosa alimenta um desejo intenso de vingar sua mãe. Apesar de tudo, Dementus demonstra afeto pela menina, a protege e até salva sua vida em certas ocasiões. Ele a quer por perto, como parte de uma família que já perdeu. Os sentimentos expressos são confusos e complexos e as lealdades mudam de lado porque todos precisam sobreviver ou, no caso dele, ter mais poder. Chris Hemsworth sabe conduzir o personagem como uma pitada de humor misturada à loucura cruel. Sua inconsistência explica como Furiosa foi parar nos domínios de Immortan Joe (dessa vez interpretado por Lachy Hulme): com a intenção de ampliar seus domínios das areias do deserto para a Vila Gasolina, Dementus troca a menina pela administração da cidade fortificada, que tem papel estratégico na manutenção de poder dos Senhores da Guerra.

Furiosa, ainda criança, é ameaçada de estupro e convive com outras mulheres cuja sina é parir os filhos de Immortan Joe. Foge, sobrevive e cresce (agora interpretada por Anya Taylor-Joy) Tem o alento de, em um contexto de tanta violência e dessensibilização, encontrar gentileza, carinho e companheirismo em Pretorian Jack (Tom Burke). Esse respiro em meio a tanta dor é um lembrete de que existe alento e se ele não durar muito, pode ser reencontrado em outro lugar. Encaixa com a própria jornada da personagem, suas frustrações e suas derrotas, entremeadas por pequenas doses de candura.

Nesse sentido, é interessante notar como a Furiosa de Estrada da Fúria, apesar do seu nome e da sua força (física e não-física), carrega consigo também fragilidade e sensibilidade. Seu escudo é sua empatia. Já em Furiosa, por sua vez, ela precisa primeiro se tornar homem, de maneira prática mas significativa, para sobreviver (e assim encontrar outro amor que não o que tinha em seu lar original). Em ambos os filmes ela é uma guerreira sobrevivente, mas sua conexão não é com Senhores da Guerra: é deles que está sempre fugindo. Sua conexão é com as mães, as do passado e as do presente, como se isso a conectasse com sua casa, mas também com uma comunidade maior. É como se esses filmes afirmassem que existisse algum tipo de feminilidade que transcende, mas felizmente sem limitar a um tipo específico de ser mulher, permitindo que mulheres, em sua pluralidade, existam e se fortaleçam. Furiosa, assim, sobrevive porque é mulher, conectada a outras mulheres, em jornada que permite um trânsito por masculinidade e feminilidade, que são ambos incorporados a ela. Furiosa, afinal, é ciborgue e conforme a filósofa Donna Haraway:

descobrimo-nos como sendo ciborgues, híbridos, mosaicos, quimeras. Os organismos biológicos tornaram-se sistemas bióticos – dispositivos de comunicação como qualquer outro. Não existe, em nosso conhecimento formal, nenhuma separação fundamental, ontológica, entre máquina e organismo, entre técnico e orgânico (HARAWAY, Donna. Manifesto Ciborgue, 2009, p. 91).

Em sua proposta feminista, Haraway define que o ciborgue é um ser híbrido: orgânico e máquina. Para a autora, a cultura high tech influenciaria diretamente as relações entre gênero, trabalho, sociedade e corpo. A pobreza, que já é generificada, seria particularmente afetada pelas novas tecnologias no sistema capitalista. Basta pensar na condição subalternizada que tenta-se impingir às mulheres no mundo pós-apocalíptico de Mad Max. Ou, ainda, como seus corpos, quando jovens e hábeis, são comoditizados, especialmente para o trabalho reprodutivo. “Não somos coisas” era a frase de efeito em Estrada da Fúria. Mas esses corpos férteis são potência, assim como a semente carregada por Furiosa: a semente de um futuro novo Lugar Verde. Quando muitos filmes de ação resumem personagem feminina forte à sua capacidade de destruição, Miller traz justamente o poder de criação, em suas múltiplas camadas, como uma força. Inteligência, bondade e criatividade também são recursos valiosos nesse cenário. “Quem matou o mundo?”: era a pergunta feita no outro filme. Talvez não haja uma só só resposta ou ela seja muito longa e complexa. As guerras? Os homens? As máquinas? Mas a solução está nas sementes.

Miller gentilmente opta por não mostrar em detalhes a morte do companheiro de Furiosa: seria apenas exploitation sensacionalista e é possível inferir a dimensão da violência grotesca. Ela conjuga a dor emocional da perda amorosa com a dor física da perda de um membro. Na condensação entre amor (não necessariamente romântico, bastante prático, até), ódio e desejo de vingança se reconfigura e recorporifica ciborgue, para “abraçar a habilidosa tarefa de reconstruir as fronteiras da vida cotidiana, em conexão parcial com os outros, em comunicação com todas as nossas partes” (HARAWAY, 2009, p. 98). Furiosa é também o elo entre passado e futuro e entre tantos corpos explorados. Nem mesmo a máquina, que tantas vezes aparece como ferramenta de destruição, é algo inerentemente ruim. Sendo ciborgue, o corpo de Furiosa é híbrido: marcado por masculinidade e feminilidade, construído por carne e metal, posicionado em um contínuo entre animalidade e maquínico. Sua existência e sua sobrevivência questionam a naturalização da categoria humano, que tantas vezes diz respeito a apenas grupos específicos de pessoas, em processos sócio-históricos de exclusão. Furiosa nada mais é que uma heroína pós-humana.

A direção de arte de Colin Gibson, colaborador de longa data de Miller, nos delicia com detalhes curiosos, nesse mundo devastados, em que a engenhosidade para adaptar tecnologias existentes se faz necessária. Destaco a vistosa biga de inspiração romana, mas guiada por um conjunto de antigas motos, conduzida (com direito a rédea e tudo) por Dementus. Gradativamente, de forma que beira o ridículo, ela recebe mais motos destacando ao mesmo tempo o aumento de poder do personagem, mas também seu comportamento megalomaníaco (e destemperado). A caracterização dos personagens, inventiva, segue ótima, com destaque para o figurino de Jenny Beavan (já oscarizada pelo trabalho no filme anterior). É interessante como há uma sutil diferença de cor na pintura facial Pretorian Jack e de Furiosa, a dele preta como graxa, a dela grafite-prateada. Além disso, fica claro, especialmente, que Dementus é um personagem cuja crueldade desvairada está relacionada ao próprio passado: carrega nas costas uma anágua branca e na cintura um urso de pelúcia, quem indicam que ele mesmo perdeu uma família, provavelmente de maneira atroz a ponto de torná-lo quem é. A aleatoriedade de suas ações é reforçada em momentos como quando, ao imergir da fumaça vermelha de um sinalizador com barba, cabelo e tecidos de sua roupa tintos de rubro, ele incorpora esses elementos a sua estética e até mesmo muda temporariamente de epíteto.

Dementus afirma reiteradamente que não há esperança e que é inútil se apegar a ela. Furiosa, como vimos em Estrada da Fúria, é movida justamente pela esperança. Talvez tenha sido um erro, mas foi também o que a salvou. O arco de vingança é intenso, reforçado pelas rimas visuais que resgatam imagens do outro filme, recriando-as em outros contextos. Mas, afinal, a vingança não traz nada. Os imensos olhos de Anya Taylor-Joy comunicam força, tristeza, amor e resiliência em uma construção narrativa que realmente não precisa de palavras.

É possível que o argumento de que Furiosa: Uma Saga Mad Max (Furiosa: A Max Saga, 2024) não é um filme necessário seja utilizado. Mas o que é necessário, afinal, quando se fala de narrativas cinematográficas? George Miller faz questão de não deixar quem assiste esquecer que esse filme só existe em função do outro. Replica imagens, personagens, temas e amarra seu desfecho com o começo de Estrada da Fúria, cujos pontos marcantes são até mesmo exibidos nos créditos finais desse. Mas toda essa elaboração criativa amplia e dá profundidade ao universo apresentado anteriormente. Taylor-Joy não é Theron, e tudo bem, nem precisa ser; da mesma forma que Hardy e Gibson também encarnam versões diferentes de Max; e que os próprios filmes da franquia são realizados com nuances e estilos distintos. A ênfase deixa de ser para a ação desenfreada e é dada à construção de uma bagagem emocional que sustente a trajetória da personagem. Em um mundo decadente e brutalizado, Furiosa, a heroína-ciborgue, borra limites e hibridiza categorias, mas (se) permite ter esperança e sentir, com um resultado pungente.

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Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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