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[44ª Mostra de São Paulo] A Pastora e as Sete Canções

Esta crítica faz parte da cobertura da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 22 de outubro e 4 de novembro em formato online.

Existe uma esfera de mito e poema em A Pastora e as Sete Canções (Laila Aur Satt Geet, 2020) que é difícil de ser alcançada, pelo menos por mim, com meu parco conhecimento da região em que se passa a história. E ainda assim, o filme se desenrola com uma beleza para a qual é fácil se render. Escrito e dirigido por Pushpendra Singh, ele conta a história de Laila (Navjot Randhawa), uma jovem da população Gujjar-Bakarwal, um grupo nômade da região da Caxemira, na Índia. Laila se casa com Tanvir (Sadakkit Bijran) e os dois, junto com sua comunidade, se mudam das regiões montanhosas para o vale mais abaixo, para o inverno.

A população Bakarwal é acompanhada por seus carneiros. A fotografia do filme retrata sem pressa os pinheiros, os animais, as tendas, as montanhas nevadas e as roupas coloridas. Tudo parece ao mesmo tempo simples e belo, como o rosto de Laila iluminado no escuro da noite enquanto bate manteiga. Há ainda os pequenos detalhes estéticos, como o tilintar rítmico da jovem quando anda, os seus cabelos sendo trançados para a festa de noivado e o arroz que é jogado em sua cabeça. São esses detalhes que nos transportam para o contexto cultural das personagens.

A cerimônia de noivado, já citada, é dividida em cantos que ora são performados pelos homens, ora por mulheres. As canções, mencionadas no título, funcionam como os nomes dos capítulos da história.

A fama da beleza de Laila se espalha e o chefe da guarda de segurança ouve falar dela. Depois de conhecê-la a assedia e a resposta dela é espancá-lo. Seu marido teme a reação e espera maior passividade dela. Passividade essa que nunca vem. Laila é doce no trato com os animais, mas é sagaz nas respostas a tudo que acontece ao seu redor.

A guarda tem papel fundamental na narrativa, porque expressa a burocracia que não abarca os modos de vida tradicional. Pedem autorização para cruzar fronteiras de pessoas acostumadas ao nomadismo, cujos territórios não se relacionam às linhas imaginárias. Reclamam de Laila ter cruzado sem avisar e pedem seus documentos. Mas o soldado da guarda se apaixona pela moça.

Laila é insatisfeita com a apatia do marido. Ao mesmo tempo brinca com o soldado e o despista em suas intenções, embora cada vez mais se decide a agir em relação ao seu interesse. Do boi preparado para a cruza ao parto das ovelhas e seus bebês recém nascidos acolhidos pela protagonista, existe uma repetição de imagens relacionadas à fertilidade. Laila engravida e se pergunta se pode voltar a ser nova.

Ela avista uma cobra que agita e deixa a pele para trás. Nova não pode ser, mas pode se renovar renunciando, como anuncia a última canção, a vida que leva. Deixa suas roupas (se pudesse talvez deixasse sua pele) e segue com a ferocidade proporcionada pela liberdade o leito do rio para o sol que nasce, fecundo em possibilidades.

O filme funciona como uma narrativa tradicional, um conto folclórico, um mito narrado em canção. A protagonista é uma jovem obstinada e inteligente, por quem é fácil torcer, e a beleza das locações e a fluidez da narrativa colabora para que A Pastora e as Sete Canções seja uma obra bastante única sobre a força da jornada rumo à mudança.

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Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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