Cinema,  Filmes

[47ª Mostra de São Paulo] Mambar Pierrette (2023)

Esta crítica faz parte da cobertura da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 19 de outubro e 1 de novembro.


Mambar Pierrette (Pierrette Aboheu) é uma costureira na cidade de Douala, em Camarões. Mãe de três filhos, é do ofício da costura que ela tira o sustento da casa, que inclui, ainda, sua mãe idosa. O pai das crianças, ausente, não contribui sequer com uma pensão. A cineasta camaronesa radicada na Bélgica Rosine Mbakam escreve e dirige a obra e a estrutura dela é similar ao seu documentário Chez Jolie Coiffure (2018). Nele, a cineasta mergulhava na rotina de trabalho e nas conversas da cabeleireira Sabine com suas clientes. Dessa vez, o filme se estrutura em torno do ateliê de Mambar.

Logo no começo vemos que a personagem se dedica aos cuidados dos demais: cozinha para os filhos, cuida da pele da mãe, arruma o turbante dela. O espaço doméstico é o espaço do trabalho não remunerado. Mas é no quartinho alugado, com porta para rua, que ela consegue manter a família. Em um armarinho, escolhe tecidos, fitas e zíperes com cuidado. Chegando ao lugar, monta em uma mesa sua antiga máquina de costura de ferro, com um motor adaptadoe um pedal de plástico, moderno.

As finanças são a gente questão na vida de Pierrette. Quando denuncia o pai dos filhos, para a assistência social, é repreendida por ter engravidado sem casar. A sequência é retratada em um plano fixo na personagem, sem o contraplano de sua interlocutora. Ela é a centralidade da ação em meio a forças políticas invisíveis. O início do ano letivo escolar se aproxima. Isso significa que há diversas encomendas de uniformes. Mas ela precisa pagar o material escolar de seus próprios filhos, o conserto da máquina de costura, as despesas de casa e as contas não fecham. As cliente sempre pechincham valores e os gastos aumentam ainda mais depois que ela é assaltada e, na sequência, primeiro sua casa é alagada em uma enchente, depois o ateliê. Nesse sentido, talvez haja um excesso de elementos dramáticos que se empilham como obstáculos, quase sem respiro.

Felizmente a diretora entende o carisma de sua personagem. E é na costura e na interação com outras personagens de seu cotidiano que ela brilha. As conversas dão conta de abordar relacionamentos, diferenças geracionais, trabalho, política e outras questões. Uma após a outra, as mulheres ora se sentam na cadeira ao lado de sua bancada de trabalho, ora provam as roupas que já estão prontas. Pierrette, com a fita métrica pendurada ao pescoço, traça modelos sem usar régua, riscando os tecidos com estampas coloridas com o seu giz. Os barulhos da tesoura no pano, da bobina sendo preenchida com linha de pesponto, do motor trabalhando veloz são agradáveis ruídos de fundo, muitas vezes de planos detalhe das peças sendo elaboradas ou do close em seu rosto concentrado. É nesse processo que vemos decotes, laços, babados e mangas darem forma e vestidos elaborados, tudo sob o olhar fixo e levemente estrábico da manequim branca de olhos verdes (porque o filme não é, também, sem seu toque de humor). Pierrette se entrega e se encontra na confecção de vestimentas. E nada disso é possível sem as conversas com as mulheres que atende, que, por sua vez, não levam apenas roupas, mas conselhos e entendimentos.

Trata-se de um filme de estrutura simples: um drama centrado em uma protagonista que tem que vencer pequenos obstáculos do dia a dia. Mas Mambar Pierrette, a personagem, é uma verdadeira estrela e Mambar Pierrette, o filme, ganha muito com sua presença. Eu certamente assistiria a quantas horas estivessem disponíveis de filmagens dela costurando.

Compartilhe
Share

Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *