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[44ª Mostra de São Paulo] O Problema de Nascer

Esta crítica faz parte da cobertura da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 22 de outubro e 4 de novembro em formato online.

Elli (Lena Watson) é uma criança como outra qualquer, que anda pela floresta e sente o cheiro do mato e o chão molhado, no verão que começa. É também a responsável pela narração em off, que externa suas sensações. Ela pega um gafanhoto e o sente pular em sua mão e fugir. Está quente e ela e seu pai ficaram o dia todo fora de casa e a noite toda acordados e nadaram até enrugar. Elli é uma androide.

O Problema de Nascer (The Trouble With Being Born, 2020), dirigido por Sandra Wollner, que também o roteiriza com Roderick Warich, lida com temas recorrentes da ficção científica em torno de corpos artificiais. A memória e o senso de identidade são constantes no debate apresentado nesse e em outros filmes.

O termo robô, derivado de robota, está vinculado ao trabalho forçado. Ele foi usado pela primeira vez em torno de 1920 pelo escritor checo Karel Capek em sua peça R.U.R (Rossum’s Universal Robots ou Robôs Universais de Rossum, em tradução livre) designando um mecanismo automático capaz de substituir a mão de obra humana.

Já o androide é um ser mais antigo e surgiu da literatura: quando Auguste Villiers de L’Isle-Adam escreveu A Eva Futura, publicado em 1886, cunhou o termo para se referir à figura humanoide criada, na narrativa, para ocupar o lugar de uma mulher real, com sua exata aparência, mas intelecto superior. E dessa forma, o primeiro androide nasceu mulher e nasceu para atender às expectativas masculinas sobre como uma mulher deveria ser. Nasceu, na verdade, ginoide.

Se tomarmos que um androide é criado para atender aos desejos masculinos ao seu redor e que uma criatura robótica é destinada à servidão, para que tipo de ser escravidão particularmente generificada as figuras androides são fabricadas? E quando são crianças?

O homem que se apresenta como pai de Elli reforça memórias de momentos que nunca existiram, viagens nunca feitas, lugares nunca visitados. Elli as aceita e as incorpora e fala de uma tenda na praia, do cheiro de cigarro e protetor solar e todas essas referências sinestésicas que ela agrega à sua noção de existência. Em muitos filmes protagonizados por androides, a memória é utilizada como um elemento de sua humanização.

Mas, ao contrário de outros androides cinematográficos, Elli não questiona sua existência, não luta para ser vista como humana e nem se vê como tal. Ela demonstra curiosidade por outras formas de vida, como o próprio gafanhoto já mencionado, uma mosca pousada sobre o vidro da janela ou um cachorro, e observa seu próprio corpo nu com o despendimento de quem o enxerga como um objeto. As suas memórias implantadas servem mais para agradar aos humanos ao seu redor do que a si mesma.

E aí Wollner trabalha a questão da utilidade de um robô ginoide. Elli afirma que sempre estará junto ao homem que se apresenta como seu pai. Ela o observa comer atentamente e diz que ele segurava sua mão até dormir. São falas e ações projetadas para agradá-lo. O incômodo causado pela proximidade dos corpos vai gradualmente se intensificando. O barulho de um cinto que se abre fora de campo confirma uma realidade nauseante.

Se Elli tivesse apenas um dono, o filme já seria interessante ao questionar os limites éticos na interação humano-máquina; o que define queque alguém é um ser humano ou não, além da sua aparência; qual é a noção de consentimento em uma criatura programada para aceitar e a tudo que envolve exploração sexual e pedofilia.

Mas Elli, em determinado momento troca de dona (e de gênero). A senhora que a acolhe fala do menino que morreu 60 anos atrás nos trilhos do trem. A memória programada é um fardo, já que o passado de Elli se confunde com seu presente. As expectativas geram frustrações e a falta de desenvoltura da criança em sua nova história é mortal. De qualquer forma, o ciclo de uso daquele corpo se repete, ainda que de outra maneira.

O mais interessante O Problema de Nascer é a forma como Sandra Wollner se apropria dos temas mais debatidos em filmes de ficção cientifica sobre androides mas os utiliza de outras formas. Escravidão, feminilidade e masculinidade, humano e não-humano, memória e afeto são todos conceitos que permeiam a trama, mas não como o esperado. Talvez o falte ao filme profundidade na forma como as aborda, mas não falta originalidade.

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Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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