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[47ª Mostra de São Paulo] Dinheiro Fácil (2023)

Esta crítica faz parte da cobertura da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 19 de outubro e 1 de novembro.


Vou começar dizendo que não entendo de finanças. (Se entendesse talvez não escolhesse ser antropóloga e/ou crítica de cinema como profissão). Eu só sei que antigamente muitas pessoas casavam aos 20 e poucos e trabalhavam na fábrica ou na roça, e conseguiam comprar uma casinha de madeira no alto de um morro e um fusca. (Esse exemplo não é meramente ilustrativo). Hoje em dia o mercado reclama que os jovens escolhem não comprar coisas. E com a flexibilização dos direitos trabalhista, a reforma da previdência, a uberização de diversas atividades e outras tantas mudanças que sempre parecem feitas sob medida para passar a perna nas classes trabalhadoras, provavelmente eu, você e um tanto de gente nunca iremos nos aposentar. Enquanto isso os bilionários, no Vale do Silício e fora dele, reproduzem suas fortunas como se dinheiros fossem gremlins comendo depois da meia-noite. “Dinheiro faz dinheiro” eles nos falam, e temos que nos conformar em pagar boletos enquanto eles multiplicam números no ar. Mas como?

Bom, era janeiro de 2016 quando A Grande Aposta (The Big Short, 2015) chegou aos cinemas no Brasil. O filme de Adam McKay adaptava, com muito humor, um livro de não-ficção que explicava a crise de 2008, que se iniciou nos Estados Unidos quando agências financeiras criaram hipotecas em cima de hipotecas de imóveis com dinheiro que não existia. Quando a bolha estourou, a crise se espalhou pelo mundo todo. Lembro de naquele momento não ter achado tanta graça assim, nem ter entendido o apelo do filme.

A Grande Aposta é claramente a inspiração para Dinheiro Fácil (Dumb Money, 2023), comédia sobre mercado financeiro dirigida por Craig Gillespie (de Cruella, Eu, Tonya e A Garota Ideal, entre outros). O filme relata os eventos reais relacionados às ações da Gamestop, uma rede estadunidense de lojas de videogame. Em 2020, durante a pandemia, um participante de fórum do reddit de finanças e youtuber chamado RoaringKitty (gatinho rugindo, em tradução livre), cujo nome real era Keith Gill, decidiu que a empresa (na época em plena decadência) estava subvalorizada, então investiu os 50 mil dólares que tinha em ações dela. Compartilhou com inúmeros desconhecidos na internet sua estratégia financeira, o que levou a uma busca por ações da loja, sendo compradas por investidores com pouquíssimo dinheiro, coisa entre como 100 ou 700 dólares. Essa procura gradual, ao longo de meses, fez com o preço delas disparassem. Os valores investidos eram pequenos, mas a soma deles se mostrou o suficiente para afetar o mercado. O efeito virou notícia no mundo todo. (Curiosamente, na época, para tentar entender o que estava acontecendo, eu revi A Grade Aposta e passei a valorizá-lo mais não só como slide de aula de finanças (minha primeira impressão sobre ele), mas também como narrativa fílmica).

Interpretado por Paul Dano, cuja carreira é permeada por personagens excêntricos ou estranhos, RoaringKitty é uma figura absolutamente memética. Um rápido google entrega o cenário minimalista de suas transmissões ao vivo, mas também seu pôster e suas camisetas com estampas de gatinhos, a faixa vermelha à la Rambo amarrada à sua testa e os cabelos desleixadamente crescidos em um mullet. Mesmo sendo uma pessoa real, ele representa de forma caricata, ideal para a abordagem do filme, o pequeno.

Aliás, dada a banalidade do assunto, um dos pontos fortes da narrativa é justamente a construção de um retrato de época de um momento histórico próximo demais de hoje. A claustrofobia pandêmica, o uso de máscaras (inicialmente de tecido, às vezes com as pessoas usando uma sobre a outra), o isolamento de uns, o serviço essencial exaustivo de outros, o desemprego, a precariedade, o débito estudantil, a violência policial, os espaços vazios destacados nos enquadramentos e, claro, a diferença de classe que permitiu os ultra ricos viverem esse período praticamente sem preocupações. 2020 foi logo ali, mas, como foi falado em certo momento, que ano terrível! Algumas imagens ainda dão gatilho (ou melhor, gatinho, para se adequar ao filme). Nesse sentido, não só a recriação dessa época é muito boa, mas também a casualidade como o figurino é composto, não só replicando as roupas de Gill, mas também outras mais casuais, que ancoram um senso de realidade e cotidiano.

Dada a força magnética que o estilo de RoaringKitty imprime, talvez o filme perca fôlego justamente por sua narrativa fragmentada. Ele acompanha outros investidores que seguiram seu caminho, como duas estudantes universitárias, um vendedor da GameStop e uma enfermeira, que representam a massa de pessoas comuns que investiram seu parco dinheiro naquelas ações. (O termo dumb money, que aparece no título do filme, é usado para se referir justamente a investimentos de valor irrisório para o mercado). Essa última interpretada por America Ferrera, é a única cuja trajetória desperta algum interesse a mais. Por outro lado também temos a perspectiva de magnatas dos negócios, Gabe Plotkin (Seth Rogen) e Kenneth C. Griffin (Nick Offerman), mostrando a tranquilidade com tratam tudo no começo até o a derrocada (que para bilionários, nunca é uma derrocada real).

Ao mirar em A Grande Aposta o filme nunca consegue alcançar o mesmo patamar de sarcasmo e absurdo. Ainda assim é extremamente satisfatório ver essas pessoas comuns que ele retrata ganhando rios de dinheiro em um sistema que é projetado para fazê-las perder. É claro que isso significa que as regras do jogo mudaram, porque a banca nunca pode ficar no prejuízo, e provavelmente nunca mais veremos algo assim. Mas Dinheiro Fácil consegue facilmente divertir rememorando detalhes de bastidores que não eram de conhecimento geral na época, e ao mesmo tempo proporcionando ao público aquela sensação de “olha só, e não é que eles conseguiram?”.

Imagem: Divulgação
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Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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