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[47ª Mostra de São Paulo] Bons Sonhos (2023)

Esta crítica faz parte da cobertura da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 19 de outubro e 1 de novembro.


Bósnia radicada na Holanda, a cineasta Ena Sendijarević escreveu e dirigiu Bons Sonhos (Sweet Dreams, 2023), filme que se debruça sobre os desvarios coloniais do segundo país. Nele, o casal Jan (Hans Dagelet) e Agathe (Renée Soutendijk, vencedora do prêmio de melhor atuação no Festival de Locarno) possuem uma fazenda de plantação de cana e uma fábrica de açúcar na Indonésia. Os salários estão atrasados e os trabalhadores estão em greve. Jan mantém um relacionamento com Siti (Hayati Azis), uma das mulheres que trabalham na casa. Embora a sinopse do filme a defina como “amante” dele, é difícil situar o grau de consentimento da relação, dadas as dinâmicas de poder envolvidas. Mas eles tiveram um filho juntos, o pequeno Karel (Rio Kaj Den Haas).

Logo no começo vê-se Karel, exímio atirador, abater um enorme tigre em uma caçada efetuada ao lado do pai. Karel é uma criança da Ásia treinada com armas da Europa e do conhecimento local aliado ao poderio bélico estrangeiro, consegue derrotar uma criatura enorme e perigosa, num encontro de Davi e Golias. Esse talvez seja o tema central da narrativa: como se valer dos conhecimentos de fora para derrotar o que parece uma força desproporcional.

Jan e Agathe vivem em uma ilha de europeidade decadente. A sala de estar vermelho sangue e a sala de jantar verde bandeira (cores insuportavelmente desconfortáveis), os pisos de ladrilhos hidráulicos ou de lajotas preto e branco, os pesador móveis de madeira: nada disso indica que a história já se passa no século XX. A casa deles, plantada em meio a uma floresta, parece perdida no tempo.

No banquete com convidados também holandeses, Jan faz questão que todos falem apenas o idioma natal. Mas o imenso tigre morto depositado em meio ao salão, como uma marca da passagem sangrenta da colonização, mostra que ali a cortesia não consegue disfarçar a violência. A música desafinada, tocada por indonésios, é uma tentativa dos patrões se transportarem para outro continente e manterem um certo estilo de vida a ele atrelado. A mesa posta com inúmeras carcaças de animais serve de lugar para uma comensalidade bárbara e ruidosa. A diretora não poupa os exploradores do retrato grotesco de suas ações.

Acontece que Jan morre subitamente e, sozinha na fazenda, Agathe chama o filho Cornelis (Florian Myjer) para assumir os negócios. Ele vem acompanhado de sua esposa Josefien (Lisa Zweerman), que está grávida (há mais tempo que os poucos meses de matrimônio, segundo a sogra). A nora é uma personagem interessante: uma mulher que não esconde seu desejo sexual ao mesmo tempo em que vai desmontando sua pose desde o primeiro momento em que suja sua botinha branca de lama, na chegada. O penteado se torna gradativamente mais desgrenhado e a pele recoberta por marcas de picadas de insetos. O filho, por sua vez, como herdeiro do lugar, pretende vender tudo, deixar a mãe sem nada e voltar para a Europa. Afinal, colonialismo sempre anda de mãos dadas com patriarcalismo. Mas a realidade bate à porta quando eles descobrem que Jan deixou tudo para seu outro filho, Karel.

Em meio a tantos personagens ridículos, Siti se mantem altiva. Ela olha com desprezo para aqueles outros, sabendo que eles consideram os locais como selvagens a serem domados, mas que não passam de parasitas. Não existe império colonial que não deixe um rastro de destruição (da natureza, de riquezas, dos corpos, de hábitos e tradições). Herdar um local de exploração é também se tornar explorador. Ena Sendijarević sabe que não existe uma solução simples diante da violência e que a conciliação é uma impossibilidade. Bons Sonhos, não sem humor, coloca cada personagem em seu próprio beco sem saída. E, afinal, fogo nos racistas (e no legado colonial).

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Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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