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[47ª Mostra de São Paulo] As Garotas Estão Bem (2023)

Esta crítica faz parte da cobertura da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 19 de outubro e 1 de novembro.


“Que filme lindo!”. Foi essa frase que uma senhora que saía na minha frente da sala de cinema proferiu para sua companheira de programação. Não pude deixar de sorrir, enquanto enxugava os olhos marejados de lágrimas. Porque a experiência compartilhada nesse espaço escuro preenchido por luzes projetadas muitas vezes é mais bonita não nos grandes espetáculos, mas nas pequenas construções singelas.

Esse é o caso de As Garotas Estão Bem (Las Chicas Están Bien, 2023), escrito, dirigido e protagonizado por Itsaso Arana, que interpreta a roteirista e diretora Itsaso. Ela aluga uma casa de campo por uma semana para reunir quatro atrizes, para que possam ensaiar seu roteiro de um filme chamada As Garotas Estão Bem. O experimento metalinguístico é protagonizado ainda por Barbara (Barbara Lennie), Irene (Irene Escolar), Itziar (Itziar Manero) e Helena (Helena Ezquerro). Elas são acompanhadas pela dona da propriedade, Mercedes (Mercedes Unzeta) e a menininha Julia (Julia León), um achado de atriz-mirim que, com graça, sonha histórias de A Princesa e a Ervilha e explica o mundo das princesas (“que precisam ser descontruídas”, ela afirma) para as mulheres

A narrativa do filme dentro do filme é sobre uma princesa e suas quatro irmãs, que recebem cartas de um irmão ausente, comentando aspectos de suas vidas. A história se passa em meados do século XVII e para os ensaios elas usam longos e bufantes vestido coloridos de épocas diferente, compondo um mosaico lúdico e impreciso do que se entende por “filme de época”. O único elemento cenográfico que elas fazem uso é um uma cama com dossel, de madeira escura e com aparência pesada, carregada a duras penas para um celeiro.

Mas as conversas, muitas vezes retratadas em planos longos, que aprofundam a existência das personagens e as improvisações que se tornam partem do texto se espalham pelos ambientes da antiga casa, assim como pelo espaço aberto, incluindo a mesa ao ar livre e o rio. O bucólico da paisagem dialoga com a trilha sonora repleta de composições de Bach e as tapeçarias românticas utilizadas nas transições. As ilustrações da vida no campo, idealizadas, costumavam informar, também, sobre feminilidades relegadas ao espaço da natureza. Os desenhos são bonitos mas de certa forma até mesmo irônicos, já que as protagonistas do filme, apesar da locação, dialogam com o campo da cultura e se cultivam, em escritas constantes de si mesmas.

Cada personagem, orquestrada pela diretora, tem seu espaço de crescimento e de repartir com o público um pouco de sua vivência (ficcional?). Isso não ocorre de forma catártica, mas plácida, na certeza do acolhimento. Itziar está apaixonada pela primeira vez, mas não sabe se é correspondida. Helena se entrega a um rápido romance veranil com Gonzalo (Gonzalo Herrero), um simpático rapaz da vila. Irene sente falta da mãe, que morreu quando tinha 11 anos, e gostaria de contar para ela a mulher que se tornou. Barbara, por sua vez, grávida, aguarda a criança que virá, na expectativa de se tornar mãe. Quando ela olha para a câmera, quebrando a quarta parede e afirmando que está falando com uma amiga mulher, olha no fundo dos olhos da espectadora. Talvez a atriz mais experiente entre as quatros, seu diálogo direto com quem a está vendo emociona.

São nessas conversas e nesses compartilhamentos que surge, quase sem querer, um filme dentro do filme. Às vezes ele assume a teatralidade do texto interno à ele, às vezes transborda confidente. Eu sei que já usei o adjetivo singelo, mas vou usar novamente, uma vez que não por acaso anotei-o duas vezes em meu caderno durante o filme (e se o filme reflete seu próprio fazer, porque não também revelar como se faz minha escrita?). Trata-se de uma obra singela e bela, cálida e afetuosa, que comove pela delicadeza poética. O sapo, ao término, diz que a princesa não estava procurando um príncipe, mas a ervilha. Afinal, no conto de fadas, a ervilha é quem indica a identidade da princesa. Então As Garotas Estão Bem externa, também, a busca coletiva e a descoberta de suas protagonistas por elas mesmas, partilhada com quem assiste. Eu só queria poder, também, assistir ao filme dentro do filme que sairia desse ensaio.

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Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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