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[48ª Mostra de São Paulo] Malu

Este texto faz parte da cobertura da 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 17 e 30 de outubro.

Pedro Freire faz excelente análise dos traumas geracionais, íntimos e de um país, retratado a partir de uma personagem complexa, encantadora e terrível

A cena que introduz o longa é certeira na apresentação de Malu (Yara de Novaes), uma mulher de riso largo e muitos sons. O retrato livremente inspirado na mãe do diretor, Pedro Freire, não é somente um estudo de personagem, mas um filme que usa essa personalidade complexa de sua protagonista para também perceber uma transição entre gerações no Brasil. A atriz fala palavrões a todo instante, projeta sua voz, gargalha, conversa de sexo, drogas e qualquer tema considerado mais delicado mesmo na presença da mãe e da filha, se posiciona no oposto dos caretas e relembra um passado recente de ditadura. Nos anos 90, período em que Malu fixa sua narrativa, a mulher já deixou no passado uma carreira nos teatros e também uma revolução em que se posicionava como pessoa e artista. Sua mãe (Juliana Carneiro da Cunha), conservadora e racista, divide uma casa em que a construção permanece inacabada, como um projeto abandonado pela metade. A filha (Carol Duarte), também atriz, representa a geração daquele momento, menos gritante em seus posicionamentos, mais preocupada com o futuro do que com o presente, com outras preocupações que estão distantes de uma opressão militar. O trauma geracional de mulheres na mesma família é trabalhado por Freire de forma visceral, sua obra expõe e vira do avesso os conflitos, não deixa nada entalado na garganta, permite que suas personagens gritem, extravasem o que vem à mente, sem filtros nem limitações. Assim, os confrontos saem sempre de controle, é um filme que vai de zero a cem em segundos, em cenas que se começa rindo, logo a angústia toma conta. Quando Malu parece peculiar, mostra em suas palavras um lado narcisista. Há sempre essa quebra, uma montanha-russa em que a empatia pela complexa protagonista anda de mãos dadas com um grande desconforto por seus traços mais detestáveis. 

Um dos trabalhos mais interessantes que Freire faz é justamente essa análise dos conflitos familiares entre mulheres, dos traumas carregados e passados entre avós, mães e filhas, sem colocar a observação em um ponto de julgamento dessas personagens. Suas complexidades e nuances, boas ou péssimas, são bem-vindas, nunca mascaradas ou lidadas com sutilezas, as violências verbais, ou físicas, são frontais. Isso resulta em cenas caóticas em que o absurdo toma conta das dinâmicas, porque as travas emocionais e morais são eliminadas, tudo transborda, tudo é dito em uma erupção que é seguida, por vezes, de uma preocupação assim que as coisas esfriam. Há afeto no relacionamento das três, mas também muita agressividade. Na mesma medida que jogam coisas umas nas outras, voltam preocupadas com as feridas. A geração mais jovem, de Joana, é o começo de uma nova forma de enxergar as coisas, cheia de cicatrizes emocionais vindas desde sabe-se lá qual mulher de sua família, ela busca uma racionalização menos passional, propõe ajuda médica e conversas com terapeutas. Mas, quem tem uma mãe da geração de Malu sabe bem que indicar terapia é quase como oferecer a cruz a um vampiro. As cenas acompanham a dinâmica agitada que os diálogos conferem e vão desacelerando quando o longa se aproxima de um estado mais melancólico. A mulher forte e voraz vai se tornando mais inofensiva enquanto seu corpo e mente perdem força, mesmo que Freire rejeite a retratar como fraca ou abraçar uma atmosfera que permita que a tristeza ganhe do riso, é como observar uma leoa se tornando mais dócil.

Malu relaciona, portanto, o íntimo dos traumas de uma família com uma transição de gerações brasileiras. O que mais preocupa a protagonista sobre o país é ver pessoas jovens pouco revolucionárias, seu medo é que os caretas tenham poder, e qual não seria o horror de Malu ao encarar o Brasil de hoje, com o conservadorismo a todo vapor. A atriz madura, repleta de imaturidades, confronta a mãe e a filha como que enfrentando a si mesma, seus defeitos e inseguranças, sendo o abandono e a solidão as mais gritantes. O estado de constante rebeldia contra a mãe idosa é só mais uma consequência de criações repletas de traumas e violências, passadas como heranças de sangue, geração após geração. Não seria também o estado de uma sociedade uma cicatriz passada de mãe e pai para filhas e filhos? Freire não tem respostas para como parar essa dor de atravessar descendentes, de como melhorar um cenário a partir da próxima leva de seres humanos nascidos, mas retrata o sentimento com maestria e se fecha em um ponto que aceita até as piores faces de suas personagens, compreende o cuidado como uma responsabilidade hereditária na sociedade brasileira, fatalmente atrelada às mulheres. 

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Crítica de Cinema e formada em Rádio e TV. Apaixonada pela sétima arte desde sempre, trabalhando com marketing para pagar as contas e assistindo a filmes para viver.

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