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[49ª Mostra de São Paulo] 100 Sunset

Este texto faz parte da cobertura da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 16 e 30 de outubro.


Em um bairro habitado por migrantes tibetanos na cidade de Toronto, a jovem Kunsel (interpretada por Tenzin Kunsel) mora com sua mãe e com seu tio, a quem trata como pai. Ela chegou ao Canadá recentemente e ainda está aprendendo a língua inglesa. O idioma quase não é ouvido ao longo do filme. O condomínio onde mora, um enorme bloco de apartamentos chamado 100 Sunset, é majoritariamente habitado por pessoas mais velhas. Kunsel é sozinha e introvertida. O condomínio dá nome ao filme de mesmo nome escrito e dirigido por Kunsang Kyirong.

Tudo munda quando um casal se muda para o prédio: um homem mais velho e uma garota da idade de Kunsel, chamada Passang (Sonam Choekyi). As duas compartilham de uma rotina juntas, vão às aulas de inglês e conversam sobre o que podem fazer no novo país. Mas a vida que as espera não pode ser mais diferente e há um abismo de não ditos entre os momentos de diversão. O filme parece com o tipo de registro de vida que capta a banalidade do cotidiano com precisão. Os longos diálogos à mesa de carteado apresentam a dinâmica da comunidade, tão fechada em si mesma, com suas crenças, práticas, comidas e hábitos.

Kunsel aproveita os momentos de reunião das pessoas da vizinhança para checar bolsas e casacos em busca de objetos que lhe interesse e os afanar. O filme abre com imagens intrigantes registradas ainda no Tibete com uma rotina doméstica de um casal sorridente. Depois descobrimos que elas são de uma câmera de mão que a adolescente roubou de um vizinho. A partir daí a narrativa intercala suas próprias memórias, com suas filmagens granulosas, da convivência com Passang.

Há uma intensidade de sentimentos na convivência entre as duas meninas, ainda que às vezes poucas palavras sejam expressas. As atuações são bastante envolventes, ainda mais em se tratando de atrizes não profissionais. Quando Kunsel pergunta sobre o marido de Passang, por exemplo, se ele ainda a toca, há muito subentendido sem que elas precisem falar. O fato de presentear a nova amiga com um valioso amuleto roubado de uma vizinha mais velha também.

Existe um tempo dos acontecimentos e muito silêncio. A expressão do filme se dá nos planos capturados por Kunsel, em suas imagens de baixa resolução. Os closes em objetos e pessoas e seu olhar observador para as texturas, como a lã, neve, a casca da árvore e a superfície da água. O mesmo olhar voyeur se debruça sobre as janelas e sacadas dos vizinhos descortinando pequenos fragmentos de suas vidas: a pausa para o cigarro, um abraço desfeito.

A ambiguidade é intrigante. “Eu também amei ela”, diz o marido de Passang para Kunsel. Que tipo de amores a gente nunca sabe, o recorte fica por ali. Existe uma beleza singela no filme que poderia ter um pouco mais de coesão ou uma montagem um pouco mais enxuta. Mas não deixa de ser prazeroso mergulhar no olhar dessa câmera dentro da câmera com a calma demandada pela narrativa de 100 Sunset.


Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo. Agradecemos em especial a: Carlos Henrique Penteado, Gizelle Barros Costa Iida, Helga Dornelas, João Bosco Soares, Janice Eleotéreo, José Gabriel Faria Braga de Carvalho, José Ivan dos Santos Filho, Lorena Dourado Oliveira, Lucas Ferraroni, Mariana Silveira, Patrícia de Souza Borges, Pedro Dal Bó, Vinicius Mendes da Cunha, Waldemar Dalenogare Neto, Zelia Camila de O. Saldanha

Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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